sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Fique longe!


Disseram-me que Machado de Assis é chato. Concordei enfaticamente. Machado, Freud, Homero, Platão e a Bíblia, tudo isso é muito chato. Livros que sempre ficaram lá na estante de casa, com poeira velha. Da mãe, da vó, da vó da mãe, que ela guarda. Livros que não estão nem aí se você gosta deles. Não se importam com seu gosto, sua teoria, nem sua experiência de vida.

Você já os abriu por curiosidade mórbida, sabendo que não daria certo. Você abriu o volume novo do Machado, que a professora mandou comprar, porque livro novo a gente abre, pra desvirginar, e depois mete no arquivo. Fechou sem guardar o que leu. Só ficou a impressão de que aquilo não é para você, mas no sentido depreciativo da coisa que não é para você.

Eu te digo que realmente não é para você, mas depreciando você. Depois da nota obtida na escola, fique longe desses livros. Fique longe, se você não gosta. Poucos são os que realmente gostam, leem de novo, fazem de novo a escola. Sentam para saber o que não sabiam. São os que têm grandes mestres, colocam sua expectativas intelectuais lá no alto.

Heidegger não aceitou que o homem fosse comparado aos animais. A essência dele é habitar a linguagem, e escutar o ser. “Ethos anthropos daimon”, de Heráclito, cuja interpretação dada por Heidegger pode ser lida em “Para ler Peter Sloterdijk”, do também filósofo Paulo Ghiraldelli Jr: o mais próximo e despercebido, para o homem, é uma clareira onde a divindade se mostra. Então não devemos aspirar a sermos “animais racionais”. Nossa dignidade está em sermos divinos.

A escola se democratizou. Então é até um crime dizer para você não pegar em livros. Tudo parece ser para todos, e para qualquer um. Causa espanto o “não”, “acesso negado”.

Aqueles livros viraram mercadoria, sob o nome de “cultura”. O eu, que também é mercadoria, só tem valor de troca e está aí para ser consumido, consome a si mesmo consumindo as outras mercadorias (o eu é uma mercadoria essencialmente consumidora de mercadorias). Ele vai querer consumir o livro. Não há qualquer consideração sobre formação de capacidade de leitura.

Não há qualquer profundidade ou rugosidade na relação do homem com as coisas como com espelhos. Estes lhe devolvem uma imagem de performer dos gestos necessários e suficientes para produzir e consumir. Lasch (https://z-p3-scontent.fsdu4-1.fna.fbcdn.net/v/t42.9040-29/10000000_1325653257514479_4501655497539059712_n.mp4?efg=eyJybHIiOjEwMzMsInJsYSI6NDA5NiwidmVuY29kZV90YWciOiJzZCJ9&oh=1f3a9ecf2ff55287a9ad664804857f78&oe=592ECF44) propôs essa analise, e entendeu que o eu formado nesse jogo de espelhos é um “mínimo eu”.

Um material que exija paciência, dicionário, reconhecimento de que não se sabe, que se dê passos atrás, e que se volte, só pode causar incomodo. Você simplesmente descarta. Mas, em nome do consumo dos outros, a coisa descartada pelo eu não pode ser descartada do mundo. É por isso que as opiniões dos eus, de que aqueles livros são chatos, não se tornam opinião geral.

Estes livros, os livros difíceis, tornam-se campeões de orelhas e contracapas lidas, talvez também as três páginas iniciais. Tudo comentado com um “Interessante. Quero ler depois”, que vira um rótulo para a mercadoria.

O eu gosta de descartar o que existe por aí como coisa para consumo, como se ele fosse mais real ao ser “diferente da massa”. Ele procura refletir-se em espelhos mais próximos, como os familiares e amigos, como se estes o conhecessem “verdadeiramente”. Conhecem a verdade da sua performance.

Aqueles autores existem para serem chatos, mesmo. Para atritar quando se tenta deslizar por eles. São anti-deslizantes!

Fiquem longe.

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