sábado, 15 de abril de 2017

Vida e pensamento


O compromisso da filosofia é com a verdade. Para se chegar à verdade, é preciso pensar. Pensar não é solitário: é uma conversa, às vezes da pessoa consigo própria, às vezes na presença de mais gente. A conversa filosófica, de amor ao conhecimento, precisa, é claro, da presença da filosofia, na figura de um filósofo.

Numa época pós-nietzscheana, não há fundamento absoluto para a verdade. No entanto, não dá para falar que ela não exista: entende-se que a verdade é contingente a contextos de conversação. Para o filósofo americano Richard Rorty, e necessário cuidar da liberdade pois, com a existência dela, a verdade surge. Em contrapartida, sair em defesa de uma verdade é temeroso. Quem está com ela? Quem a garante?

Defende-se, em filosofia, tudo aquilo que promove a liberdade e ataca-se tudo o que a prejudica. A liberdade que traz a verdade é a de expressão. E o que é expressão senão o que se apresenta no comportamento em geral, como a sexualidade, as crenças, a sensibilidade, as posições políticas, etc? A filosofia os defende, pois deles vêm novas perspectivas. E a produção destas perspectivas mantém nossas chances de obter verdades.

Esta defesa não é, contudo, das práticas em si: nenhuma prática ou posição é a priori boa ou má ou, quanto à possibilidade de gerar um saber, certa ou errada. Até mesmo a vida não é defendida a priori. Nietzsche desnudou nossa cultura darwinista que absolutiza a sobrevivência, tornando o homem um ser antes calculador do que potente.

As profissões que cuidam da manutenção da vida, vida no sentido biopolítico, de funções vitais descritas pela biomedicina e, interligadas a elas, as profissões que cuidam do dinheiro associado à manutenção e ao desenvolvimento de seres vivos, casam-se com um senso comum geral de que vida é um bem necessário, e que requer cálculo. Viver torna-se uma necessidade. O homem e a sociedade são carentes de vida, e orçam o valor disso.

Neste entendimento, vida não é vista como dádiva, cujo receptor também faz sua doação. Vida não é imprecisão. Não pode ser contemplação, por exemplo. Agora, pensando além disso, tudo bem que haja profissões de defesa da vida como uma commodity, mas também há de se almejar algo mais.

Sloterdijk* relembra a ideia do filósofo Arnold Gehlen, de que o desenvolvimento da espécie humana ocorreu com a manutenção, nos indivíduos desenvolvidos, de fatores somáticos e psíquicos imaturos. Segundo Gehlen, a neotenia faria do homem um ser em risco, diante do mundo, e carente de suporte. Por aí é que não vai Sloterdijk, ao dizer que o homem desenvolve invernadas para viver, ambientes protegidos animados justamente pelas feições infantis dos seus membros mais jovens, e bem sucedidas devido à capacidade humana, também relativa à imaturidade, de aprender por toda a vida.

No realismo pessimista de Gehlen, as populações são necessitadas, e só uns poucos indivíduos podem desenvolver o intelecto, pois ele é um supérfluo, um luxo de artistas. Sloterdijk diz o contrário: vivemos na sociedade da abundância e de proteções e cuidados e, mesmo para os mais pobres, há a referência de que o mundo gera riquezas das quais eles também devem participar.

A filosofia nunca se pôs como realista: se o mundo apresenta guerras, se há populações pobres, se a ignorância grassa, ela mantém um ideal de paz e desimpedimento no mundo, nos organismos e nas almas, para que possa haver a conversa que conduz à verdade. A filosofia pode existir no mesmo mundo dos psicólogos, os professores, os médicos, os políticos, os sociólogos, ocupados em sanar as dores, mas ela mantém um pé fora desse mundo (como o que próprio do contemporâneo, para o Agamben): pergunta o que é a vida, a riqueza, a juventude, a inteligência, a alma e, ao buscar condições de investigar, pergunta porque estas condições, em cada uma daquelas categorias, não são melhores do que se apresenta hoje, para que amanhã a investigação também seja melhor.

Então, por exemplo, se os joves podem se suicidar por causa da série de uma garota suicida, e psicólogos e professores correm para salvá-los, o filósofo vai pegar a vontade de se matar, e também a vontade de impedir isso, como um assunto de investigação ampla. E essa investigação, enquanto experiência de pensamento, pode ser a própria geração de vida, para jovens já vivos, curiosos. E talvez para adultos mortos-vivos.

Chamamos alguma coisa de "vida real" por termos necessidade de que tenham necessidade de nós: o mundo precisa ser salvo, as pessoas precisam sobreviver, a partir de mim. A realidade, aqui, é antes a da necessidade do que a de uma vida ou um mundo num sentido mais bruto, o de sentidos e experiências. Se fosse possível colocar em questão a necessidade, o sujeito necessário sentiria vertigem de falta de mundo. A "vida real" é irreal. Seus salvadores, ao oferecerem seus préstimos, estão a pedir salvação para eles mesmos.

Será que há o que ser salvo? Minha geração ficou marcada com a extinção do Mico-Leão dourado. Não ouço mais a palavra extinção. No Brasil há índios. Os jovens mostram o que é viver, hoje. Ouço por aí a expressão "não estou sabendo lidar", utilizada para quando algo foge do esperado pelo falante. O falante lida com uma porção de coisas. Tudo é livre. Então tudo acessa o jovem, e ele vai reagindo. Ele tem seus desempenhos. Mas há algo com o qual ele não "está sabendo lidar". Não é algo ruim para mim, ou para todos. É demais para ele. Ao falar isso, já se está lidando com a coisa. Ela foi posta de lado, e pronto. Nada se perde, ou se necessita. Mas uma coisa ou outra vai sendo posta pra escanteio. O mundo, em nenhum sentido, acabará. A vida, em nenhum nível, está em risco.


*Paulo Ghiraldelli Jr. conta isso em "Para ler Peter Sloterdijk", editora Via Veritá, Rio de Janeiro, 2017.

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