segunda-feira, 3 de abril de 2017

A inospitalidade: uma leitura de "Dom Casmurro", a partir de Peter Sloterdijk


Certo dia, os olhos de ressaca de Capitu mostraram-se para Bentinho: a onda que se lançou para a areia retornou arrastando tudo para dentro. Bentinho tentou segurar-se. Arrastado, entrou em Capitu. Percebeu a existência de um fluido misterioso e enérgico a atuar ali.

No livro “Esferas”, Peter Sloterdijk apresenta a teoria de Marsílio Ficino, filósofo florentino do século XV, sobre o enamoramento: dos olhos saem raios que, ao atingirem o alvo, permitem perceber os objetos. Quando dois seres humanos trocam olhares, o espaço entre os olhos torna-se um campo de irradiação de energias. O olhar mais forte injeta nos olhos do outro os próprios conteúdos. Um espírito vital, uma névoa muito fina de sangue vaporizado, invisível, assim é transferido. O sangue sai do coração do dono dos olhos fortes, na forma de vapor e, como uma flecha, atinge e penetra nos olhos daquele que se enamorará. Dentro deste corpo o sangue voltará a ser líquido, e então se alojará no coração como um enfeitiçamento ou uma infecção. O coração e todo o organismo do atingido passarão a querer ardentemente o dono daquele sangue.

A dona dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada apaixona Bentinho. Em outro momento, Bentinho, sem qualquer experiência anterior, penteia os belos cabelos de Capitu. Faz-lhe um penteado. Por fim, dá-lhe um beijo nos lábios. Ambos afastam-se, de espanto. Bentinho quis acalmar Capitu, porém a mãe dela se aproximava. Então ele foi para o próprio quarto, e vibrou, comemorou. "Eu sou homem", ficou repetindo para si. Isso parecia indicar que ele não se submeteria mais às vontades da própria mãe. Dona Glória havia perdido o primeiro filho. Então prometeu a Deus que, caso lhe viesse um segundo, este seguiria carreira eclesiástica. Era chegada a hora de Bentinho ser enviado à revelia para o seminário. Ele não podia, enfim, evitar isso.

Aquele beijo é a mais doce das memórias do narrador Bentinho. "Os lábios aguçados envolvem o confeito, abandonam-no cerimoniosamente no espaço bucal onde a língua, com meneios impacientes, finalmente o recebe. A doçura se expande, se abre em um pequeno 'o' lisonjeador, para logo transformar toda a boca em uma bola doce que pulsa melosa e avidamente, e que se amplia para absorver cada vez mais. O próprio degustador se arredonda e continua existindo apenas como a periferia fina e cada vez mais tensa dessa esfera de doçura". (Citação de Friedrich Heubach, em Esferas, do Peter Sloterdijk, página 85).

O herói pos na boca o caramelo. Bentinho entrou na boca de Capitu, e passou a existir como um círculo dentro dela. O doce beijo fez um mundo oval, em que ambos passaram a co-habitar. Sloterdijk explica que o herói tem aversão ao adocicado. O gozo oral é inimigo do Grande Homem, daquele que sai de casa. O beijo de Capitu e Bentinho fez um mundo fora do tempo, para a habitação de ambos. Bentinho teve que ir ao seminário, onde passou alguns anos. Passou outros tantos anos na escola de direito, mas mas sua vida com Capitu não passava.

A mãe de Bentinho considerava que entregá-lo a Deus era uma forma de tê-lo. Com Capitu, Bentinho fazia promessas também para Deus, mas como para um terceiro, que compunha aquela união. Meter-se no tempo para envolver-se com Deus, e então ser de sua mãe, não lhe fazia sentido. A partir do interior da união fora do tempo, com Capitu, ele compôs-se com Deus.

Capitu não se dobrava à vontade de ninguém. A irritava o fato de Bentinho dobrar-se à vontade de sua mãe. José Dias uma vez acusou a dissimulação da moça. Capitu é um sujeito, sempre mantem suas intenções, mesmo que não as mostre. José Dias tenta ser sujeito, movendo-se para conseguir o que quer. No entanto, ele exibe as próprias intenções, só que com uma subserviência matreira. Bentinho não formula sua intenções por conta própria e, quando finalmente as têm formuladas, continua precisando do direcionamento de Capitu.

O narrador Bentinho fala das características de todos os personagens, mas deixa de dar as suas próprias. Voltou dos estudos, casou-se com Capitu. Sloterdijk fala do retorno do herói explorador ao lugar de onde ele veio: o interior de sua mãe. Dona Graça queria que Bentinho fosse padre ou advogado. Mas ela não o queria distante. A mãe acolhe de volta o filho que um dia saiu. O útero confere identidade, dá nascimento ao Grande Homem, um segundo nascimento. Mas o útero para o qual Bentinho voltou foi o de Capitu. Esse útero, porém, produz um outro filho, outro devido aos modos diferentes que apresenta. Fossem os mesmos modos de Bentinho, seria uma continuidade dele mesmo dentro da mãe. Com aquele filho, Bentinho não se identificava. Talvez nem pudesse, pois ele mesmo não completara sua gestação.

Diante da porta da caverna, a vagina de Capitu, Bentinho estacou. De onde veio aquele outro, que lhe atrapalhava o nascimento? Bentinho já havia percebido os olhares de Capitu aos jovens, na rua. Na Odisseia, Ulisses, em seu retorno a Ítaca, deu uma pausa de sete anos, tempo em que viveu com a ninfa Calipso. Ele havia enfrentado a longa e dolorosa guerra de Tróia. No retorno, escapou de gigantes comedores de carne humana e de mares perigosos. Agora a bela ninfa lhe oferecia descanso eterno, vivendo de sua glória na guerra. Ulisses, porém, sofria com saudades de casa. Ele precisava voltar, como que para realmente existir, ser o homem que fizera aquilo tudo que os aedos já cantavam. Ele sabia que se prosseguisse viagem enfrentaria outros perigos. Se ele ficasse, poderia viver para sempre, mas não teria nascido.

Ulisses, então, empreende o caminho de volta, enfrentando perigos maiores do que poderia imaginar. A deusa Atena sempre o acompanha. Quando ele chega em Ítaca, Atena o disfarça de mendigo, deixando-o irreconhecível para todos que conheceram há 20 anos, o tempo total em que ele passou fora. Aos olhos de todos ele não era ninguém, por isso um observador privilegiado para saber quem respeitava sua honra, ou seja, quem profanava seu útero. Encontrou diversos homens maltratando seu filho, Telêmaco, também gastando à vontade os seus bens e insistindo afrontosamente para que Penélope, a mulher dele, os desposasse. Cuidadosamente, Ulisses prepara sua vingança, e a executa sangrentamente. Assim, Ulisses presentifica sua lenda. Não é o "felizes para sempre", de uma história, a realização do segundo nascimento de um herói? Nascimento enquanto afirmação de identidade?

Bentinho viu à distância pretendentes de Capitu, mas nenhum se aproximava. Quando nasceu o Filho do Homem, nome que José Dias atribuíra Ezequiel, Bentinho não soube contra quem lutar. O resultado das outras trocas de olhares de Capitu, as quais ele não sabe direito o que houve, estava ali, diante dele. "Uma ponta de história, o início, não se atava à outra, o final".

Importa a este texto a dificuldade de Bentinho em nascer novamente, em ser Um Homem. Não importa, aqui, se Capitu o traiu ou não o traiu. Bentinho enviou-a, com o filho, para a Suíça, onde ela passou o resto dos seus dias. Bentinho lembra com muito carinho da menina que o capturou. A Capitu adulta está embaixo da terra. Este útero que não pode lhe dar nascimento.

Mesmo depois de adulto, Bento Santiago ainda era Bentinho.


Imagem:"Os Amantes de Veneza", de Paris Bordonne, século XVI.

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