domingo, 4 de dezembro de 2016

Sócrates e Eleazar: dois homens sob a lei


Sócrates incomodava seus compatriotas. Seu amigo Querofonte ouviu da pitonisa, no Tempo de Apolo, que Sócrates era o mais sábio dos atenienses. Seria mesmo? Interessado em saber o que ele mesmo era, o filósofo perguntava aos outros se eles sabiam o que eles eram: um soldado condecorado, sabia o que era a coragem? Um juiz sabia o que era a justiça? Com essas perguntas, Sócrates só angariava exemplos dessas coisas, não obtinha nenhuma definição da natureza delas. Ele percebeu em que medida ele era o mais sábio: na medida em que ele possuía a clareza, que ninguém possuía, de que ele não sabia o que aquelas coisas eram.

Em velhice, Sócrates foi acusado de adorar deuses estranhos e de corromper a juventude. Ele foi condenado, e sua punição seria a morte por ingestão de cicuta. Na prisão, o filósofo recebe a visita de seu amigo Críton¹. Críton propõe que o amigo fugisse, escapasse àquela condenação injusta. Em sua resposta, Sócrates fala como se fosse as Leis que o condenaram. O que as Leis diriam a ele, um velho ateniense que considerava fugir da prisão? As Leis dizem que Sócrates passou a vida sob a vigência delas. Ele cresceu e viveu como homem livre, em Atenas. Poderia ter se desagradado, e ter ido morar em outra cidade, mas permaneceu em Atenas. Fez e criou seus filhos sob estas leis, contra as quais nunca pôs qualquer objeção. Agora que ele fora condenado, não poderia recusá-las.

Não é consultando uma subjetividade que o ateniense se conhecia. O conhece-te a ti mesmo de Sócrates é o conhecer o que a pólis confere a ele: se ele é livre ou escravo, soldado ou artesão, o homem deve conhecer a si mesmo a partir dessa posição e de se ele está apto a exercê-la. O ateniense era considerado livre se tivesse o direito de viver em sua morada, ou seja, em seu ethos. Viver num ethos é viver de um modo próprio, mas segundo os costumes da sua cidade. É não ser coagido a adotar nenhum comportamento, pois isto caracteriza a situação do escravo, aquele que está fora do seu ethos. É não viver considerando que sua vida deva se dar o mais livre possível das leis da sua cidade, que é a forma como nós, modernos, entendemos como é bom de se viver.

As Leis atenienses guardavam o ethos da cidade. Segui-las levava o homem a ser justo, ou seja, a ajustar a própria vida à cidade. Essa instância objetiva era o meio pelo qual o homem era reconhecido pelos outros, e também se auto-reconhecia, conhecia a sua própria alma. As Leis devem se por para a individualidade de Sócrates existir.

Sócrates morreu em 399 a.C. Mais de um século depois, Roma surgia como uma grande potência. Ela havia incorporado a cultura grega, incluindo toda a sua mitologia. Na história do povo judeu, conta-se que a esta época eles tentavam resistir a serem helenizados. Os judeus haviam perdido as terras e a organização política cujo auge foi o reinado de Salomão. Agora lutavam contra a pressão de outros povos, para manter as tradições dos seus antepassados. Antíoco IV Epifânio, rei da Síria, era um dos que forçavam a que os judeus abandonassem seu ethos. O interesse nisso estava, logicamente, na facilitação da sua dominação econômica e política, sobre eles.

Um dos principais doutores da Lei de Deus era o Sumo Sacerdote Eleazar². Ele era velho, e conservava os traços belos. O Rei Antíoco o pegou. Mandou que seu soldados fizessem-no comer um pedaço de carne de porco, proibida aos judeus. Forçaram a carne em sua boca, mas Eleazar a cuspiu. O rei mandou matá-lo. Os torturadores eram antigos conhecidos de Eleazar, e dele se compadeceram: falaram para ele pegar um pedaço de carne permitida aos judeus, e então comer, como se fosse a carne ordenada pelo rei. Assim, ele estaria salvo da morte. Eleazar, porém preferia morrer honradamente a viver envergonhado. Ele tomou uma decisão coerente com a sua idade e com a vida sob a Lei de Deus, que era a sua desde a infância.

“Podem mandar-me para a mansão dos mortos. Em minha idade não fica bem fingir, senão muitos dos mais moços pensarão que um velho de noventa anos chamado Eleazar passou para os costumes estrangeiros. Com o seu fingimento, por causa de um pequeno resto de vida, eles seriam enganados, e eu só ganharia mancha e desprezo para a minha velhice. Ainda que no presente eu me livrasse do castigo humano, nem vivo nem morto conseguiria escapar das mãos do Todo-Poderoso. É por isso que, se eu passar corajosamente para a outra vida, me mostrarei digno da minha idade. Para os mais moços posso deixar um exemplo honrado, mostrando como se deve morrer corajosa e dignamente pelas veneráveis e santas leis.” (2 Macabeus, 6:23)

Os torturadores consideraram aquilo uma loucura, e tornaram-se cruéis. Para Eleazar, ser ele mesmo era agir conforme viveu sua vida, seguindo as mesmas leis. A diferença com as leis da pólis grega está no fato de que as leis dos judeus não estão numa cidade, mas no conjunto de práticas que eles carregam consigo, desde os seus ancestrais. Moisés, Abraão e Davi são lembrados como exemplos de homens virtuosos, exemplos para o indivíduo judeu, porque seguidores das leis de Deus. Eleazar via a si mesmo e era visto como um legítimo pertencente desta linhagem. Era um exemplo para os mais novos, alguém que os ensinava sobre a história do seu povo e a necessidade de se manterem os costumes.

Manter os costumes era obedecer às Leis de Deus, que era a lei da vida, contraposta às leis pagãs, entendidas como leis que geravam a morte. Na medida em que as Lei de Deus regravam as relações sociais de modo a que não se formasse domínio de um homem sobre o outro, elas garantiam a vida social em paz. Teologicamente, um Deus único, criador de tudo, é o rompimento da adoração de deuses relativos a elementos da natureza. Se Deus criou tudo o que existe, inclusive a natureza, ele se torna intangível para o homem. Ou melhor, sua única tangibilidade são as suas Leis. Nem o Templo construído para ele, em Israel, poderia contê-lo. Isso impedia que um homem aquistasse o direito de representá-lo mais do que outro homem. Ou que um homem se colocasse como um deus, como o próprio Antíoco fazia.

Em outro episódio, por exemplo, Antíoco torturou e matou sete rapazes e sua mãe, judeus, querendo que eles renegassem seus costumes. Antes de morrerem, eles foram dizendo ao rei que eles morriam seguindo as leis de Deus, e desprezando as leis do rei. Deus estava corrigindo-os por um erro que eles ou seus antepassados cometeram, mas logo ele seria misericordioso. Eles viveriam a vida eterna. Mas o rei, disseram eles, por usa soberba, jamais receberia a misericórdia de Deus. Ele será punido, e conhecerá a morte eterna.

Voltando a Eleazar, antes de morrer, ele disse: “O Senhor, que possui a santa sabedoria, sabe que eu, podendo escapar da morte, suporto em meu corpo as dores cruéis da tortura, mas em minha alma estou alegre, porque sofro por causa do temor a Ele.” (2 Macabeus, 6:30). Eleazar tornou-se um exemplo de heroísmo e virtude para os mais jovens e para o povo. Eleazar se afasta da dor física, para falar de uma alegria da alma. Afasta-se da morte deste corpo, para falar de uma outra vida. Afasta-se de um temor terreno, para falar de um temor divino. A identidade do judeu, assim como a do grego, precisa da vigência das Leis. É por meio desse elemento objetivo que ele conhece a própria alma, quem é ele. Sócrates e Eleazar falam de suas vidas enquanto seguidores das Leis. Esta é a identidade deles.

As leis dos gregos eram estabelecidas na Assembléia e sua força dependia que os indivíduos as assumissem. E os indivíduos as obedeciam, para que não houvesse injustiças, conflitos, no limite, guerras. As guerras seriam um castigo dos deuses pela desobediência às leis. Para Sócrates, seguir as leis era uma questão de liberdade, e liberdade era a coerência consigo mesmo. Ser incoerente consigo mesmo era também viver fora do ethos, estar em conflito com a cidade. Um devoto de Apolo, como Sócrates, não queria um castigo assim.

As leis dos judeus colocam-se para eles como uma tradição transgeracional. Elas foram recebidas de Deus pelos seus antepassados, e apresentadas como a chave para uma aliança que levaria o povo a uma vida de paz e prosperidade. As Leis são a objetivação da vontade de Deus, que deve ser absoluta para os homens. Eleazar não se preocupa se é ou não incoerente consigo mesmo. Ele sempre seguiu a Deus. O que ele não quer é que a vontade de um outro homem vença a Vontade de Deus nele. Ele não quer que a lei de um rei seja aquela que faz seus joelhos dobrarem. Eleazar não obedeceu Antíoco porque não o temia. O rei poderia tirar sua vida terrena, mas Deus tiraria sua vida eterna. E é Deus quem pode lhe dar esta. E é a obediência a Ele que fez de Eleazar um exemplo para o seu povo. Um povo que o olhou como herói e virtuoso.

Eleazar morreu sabendo que ele fez com que algo fosse mais forte sobre ele mesmo do que sua vontade de desistir, pela dor física, ou do que a vontade de um outro homem. A identidade do judeu parece ser o fazer com que uma força maior do que tudo determine a sua vida.

P.s.: A imagem inicial é de Gustave Doré, “The Martyrdom of Eleazar the Scribe”, de 1866.

1. Para esta exposição sobre Sócrates e Críton, e para as ideias subsequentes acerca da individualidade socrática, baseei-me no texto “Sócrates, o eu e as leis”, de Paulo Ghiraldelli Jr. (http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/socrates-eu-leis.html)
2. A história de Eleazar é contada no livro 2 Macabeus, do Antigo Testamento.

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