terça-feira, 9 de agosto de 2016

Parabéns sinceros a Rafaela


Rafaela Silva ganhou o ouro no judô feminino nestas olimpíadas de 2016(http://aovivo.folha.uol.com.br/2016/08/08/4970-aovivo.shtml). Ela é moradora da Cidade de Deus, uma favela carioca, e aprendeu judô em um projeto social.

A quem Rafaela agradece à sua medalha? Rafaela pode agradecer ao projeto social, que ensina coisas a crianças e jovens desassistidos pelo Estado, e sem o qual eles ficariam mais à mercê da violência. Sem este projeto, lógico, não haveria sequer a judoca Rafaela.

Mas este agradecimento, quando feito pelos militantes de esquerda, tem uma mágoa que nega a vitória de Rafaela. No facebook tem havido comentários de que a luta que Rafaela empreendeu contra suas difíceis condições de vida, para que chegasse a ser judoca e às olimpíadas, é uma luta contra toda a sociedade, que lhe negou os direitos. Então, dizem estes comentários, ninguém a não ser Rafaela e os outros integrantes do seu grupo de minoria podem comemorar o ouro olímpico.

Os direitos à saúde, moradia e educação do pobre são mesmo inexistentes. O direito ao lazer e ao esporte, então, é impensável. Projetos sociais são implementados por gente interessada em doar seus recursos em prol dessas pessoas. Curiosamente, dentre esses projetos, os esportivos são os mais realizados.

O esporte é uma fuga da realidade, ao mesmo tempo em que deixa claro um programa a ser seguido para que alguém se torne excelente. Este programa é o de uma partida, em que um garoto se esforça, marca três gols e é adorado. E é o de um treino para o campeonato que ocorrerá em dois anos, em que a evolução do garoto recompensa o esforço dele.

Rafaela, enquanto aluna de um projeto desses, sabe o esforço que precisou fazer para disciplinar-se e desenvolver-se como judoca. Ela, sem dúvida, agradeceria ao projeto social, enchendo de orgulho o responsável por ele. Mas o responsável pelo projeto não é o responsável pelo brilho de Rafaela. Rafaela é a responsável pelo seu brilho.

Quando se diz que todos devem calar-se, culpados, por terem atrapalhado Rafaela, o que se está fazendo é diminuir a vitória dela. As olimpíadas, em sua origem, tinham a função de mostrar a excelência dos deuses. Um atleta, ao vencer, mostrava a todos que ali ocorrera a ação de um deus, que um deus havia estado com aquele atleta. A cidade se regozijava, com isso, e este era o espírito olímpico.

Hoje, apesar das nossas preferências por times ou seleções, queremos que “o melhor vença”. Mesmo acreditando no esforço do indivíduo, ainda queremos que algo maior do que nós se faça presente. É assim que olhamos para Rafaela. É um indivíduo que se fez excelente, e venceu. E é a demonstração de algo misterioso, que trouxe a vitória até ela.

Acredito que todos vejamos isso, mesmo aqueles que, num segundo momento, danem a falar que Rafaela é vítima social, mesmo sendo campeã olímpica. A vitória de Rafaela é para todos, pois mostra que o melhor pode vir de qualquer lugar, em nossa cidade. É uma vitória, também, que nos desce amargo, por ainda permitirmos que os projetos sociais pequenos sejam os únicos a olharem para os pobres.

E é uma vitória da Rafaela, não contra uma condição de vítima, a qual, se houvesse pesado sobre ela, certamente não teria deixado que ela fosse excelente como é, mas uma vitória contra a própria dificuldade em disciplinar-se. Esta luta é comum a qualquer atleta, viva aonde viva.

A mentalidade que cria a figura da vítima não compreende que um indivíduo possa ser o melhor por esforço próprio. Se ele vence, automaticamente é um usurpador do direito de alguém. Ou, no caso de Rafaela, é alguém que venceu usurpações. Não se chega no esforço do atleta. E fica-se incapaz de dar parabéns sinceros à Rafaela. E a nós mesmos, por termos visto aquele belo waza-ri.

Só a aceitação de que esta é uma vitória de todos é que nos fará valorizar e dar mais condições não só ao esporte, mas a todas as atividades formativas. Faremos isso porque queremos mais ocasiões para nos orgulharmos de nós mesmos.

Já a assunção de que a vitória de Rafaela é uma vitória apenas de uma minoria continua com o cultivo do vitimismo e da lógica da necessidade, que não leva nada de bom a ninguém. O parabéns que vem disso é cheio de mágoa.

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