domingo, 24 de julho de 2016

O amor por Davi


O corte ainda estava quente. A cabeça de Golias ainda estava na mão de Davi quando Jonatas o conheceu. Desde o primeiro momento, Jonatas amou Davi. Amou-o como a si mesmo.

Saul, o pai de Jonatas e ainda rei de Israel, vendo que Davi se saía bem em todas as expedições militares para onde era enviado, estabeleceu o jovem como chefe dos homens de guerra.

Toda a tropa e os ministros de Saul estimavam Davi. Saul vinha, contra ele, alimentando um crescente ódio. Isto começou quando Saul e sua comitiva haviam retornado da vitória sobre os filisteus, aquela em que Davi havia derrotado Golias. As mulheres de Israel receberam-os alegremente, cantando "Saul matou mil, mas Davi matou dez mil."

No dia seguinte, Saul fora apossado por um espírito mau. Justamente Davi era o encarregado de acalmá-lo, tocando harpa. "Vou cravar Davi na parede", pensou Saul, e contra o jovem atirou a lança. Não o acertou.

Estes acessos ocorriam a Saul desde que Javé afastara-se dele, ao tê-lo desobedecido: no ataque aos amalecitas, ao invés de exterminar todos os homens, mulheres e animais, Saul poupara o rei Agag e os melhores animais. Almejara, com isso, satisfazer suas próprias ambições.

As vitórias de Davi, agora como comandante, demonstravam que era sobre ele que agora estava Javé. E Saul o invejava e odiava por isso.

Um dia, Saul disse a Davi que que lhe daria sua filha Merob como esposa. "É melhor que ele seja morto pelos filisteus, e não por mim.", era a sua intenção. Davi estranhou a oferta do rei, visto que ele não era ninguém, seu pai não tinha importância em Israel.

Merob, porém, acabou sendo entregue a outro homem. Micol, a segunda filha de Saul apaixonara-se por Davi. Isto convinha ao plano de Saul.

Saul mandou os ministros dizerem a Davi que o rei lhe estimava. Davi respondeu-lhes que era um homem pobre, sem recursos. Os ministros levaram a resposta de Davi a Saul, que mandou-lhes dizer a Davi que o rei não se importava com dinheiro. A fim de expor Davi ao perigo, ele deveria pegar cem prepúcios de filisteus.

Davi considerou justa esta condição, para ser genro do rei. Davi matou não cem, mas duzentos filisteus. De cada um segurou o pênis, esticou-o e cortou a pele que recobria a glande.

Davi sempre vencia as batalhas. O povo lhe amava, assim como a filha de Saul. Saul queria matá-lo, e Davi finalmente percebeu isso quando, por uma segunda vez, tocava harpa para o rei e viu voar perto de si a lança sedenta de sangue. Micol, sua mulher, disse-lhe para fugir.

Micol pegou uma estátua, deitou-a na cama, sobre sua cabeça pôs uma pele de cabra e sobre o corpo um manto. Aos emissários de Saul, que vieram buscar Davi, Micol disse que Davi estava doente.

Saul ordenara que Davi fosse trazido até ele com cama e tudo. Ao constatar que na cama não havia Davi, Saul questionou a lealdade de sua filha. "Ele me ameaçou, e disse que me mataria se não o deixasse partir."

Davi foi encontrar-se com o profeta Samuel, aquele que um dia apontara Saul como rei, mas que, ao ver sua desobediência para com Javé, dele retirou o dom de ter a companhia de Deus e o transferiu a Davi. Davi e Samuel esconderam-se num convento.

Saul ficou sabendo disso, e enviou emissários para prenderem Davi. Os emissários encontraram os profetas em meio a um transe. O espírito de Javé também caiu sobre os emissários, inserindo-os no transe. Outros dois grupos de emissários Saul enviou, e estes também foram tragados.

Saul foi pessoalmente ao convento. Também ele foi tomado pelo espírito de Javé: tirou a roupa, deitou-se nu no chão, e assim ficou o dia e a noite inteiros, entregue à vontade de Javé.

Davi novamente fugiu. Encontrou-se com Jonatas. A ele perguntou que mal havia feito ao rei, para que este quisesse matá-lo. Jonatas assegurou-lhe que seu pai não movia nenhum plano contra Davi, pois de outro modo ele saberia. Davi disse que Saul sabia bem da afeição existente entre eles.

Jonatas disse a Davi que sondaria seu pai, a respeito de Davi. No momento da refeição familiar, Saul estava à mesa com seu tio Abner e seu filho Jonatas. O lugar de Davi estava vazio. Isso repetiu-se por dois dias seguidos.

"Por que o filho de Jessé não veio nem ontem nem hoje para a refeição?", enfim perguntou o rei. Jonatas disse ao pai que Davi fora a Belém, para um festividade em que sua família participaria. Saul gritou contra o filho: "Filho de transviada! Pensa que eu não sei que você está do lado do filho de Jessé, para sua vergonha e para vergonha da nudez de sua mãe?" E contra ele atirou a lança. Jonatas escapou ileso.

O terror de Saul completava-se com seu filho estando ao lado do seu inimigo. Seu desespero total vinha com a grande afeição de Jonatas por Davi.

No dia seguinte, Jonatas foi encontrar-se com Davi. Ao se verem, os dois se abraçaram e choraram bastante. "Nós juramos um ao outro em nome de Javé. Que Javé seja sempre juiz entre mim e você, e entre os meus e seus filhos.". Hoje, pessoas que se sentem mal-vistas pelos outros dizem "só Deus pode me julgar".

A história da perseguição de Saul a Davi continuaria.

Davi era jovem, vitorioso como guerreiro e amado por todos. Era admirado e amado por outro jovem, Jonatas que, por algum motivo, não saía para viver com ele.

Pátroclo e Aquiles, na Ilíada, também eram os melhores amigos um do outro. Aquiles era o ideal de homem e de lutador para Pátroclo. Aquiles era seu protetor, professor e maior amante.

Na Grécia antiga, um homem mais velho cuidava e ensinava seu trabalho a um jovem. Esta era uma relação de ensino e também homoerótica. A antiguidade judaica não tinha motivos para não conhecer isso.

No Levítico, Javé, por meio de Moisés, advertiu: "Não se deite com um homem, como se fosse com mulher: é uma abominação". No Antigo Testamento, o homem devia depositar suas sementes em sua mulher, ou em suas mulheres, para constituir sua linhagem, fazer seu nome prosseguir depois que ele morresse.

A Bíblia não explorará a especificidade da relação entre os guerreiros, como fez a Ilíada. Entre um grande guerreiro e seu aprendiz, a relação não era como a de um homem e uma mulher. Pelo contrário, não poderia haver afeminação, submetimento de um pelo outro. Entre os homens havia sobretudo o cultivo da masculinidade e da expertise. No caso de Davi e de seu exército, da expertise guerreira.

Jonatas amou Davi "como a si mesmo". Freud falará que o homossexual é alguém com investimento grande de amor por si mesmo, e a partir daí amará homens, que são como ele próprio. À parte da ênfase sexual que damos para o amor, reconhecemos que um amado nos inspira naquilo em que queremos nos tornar.

O amor de Jonatas por Davi era um anseio para entregar-se a este jovem semelhante a ele, mas que levava uma vida excitante. E que a vivia com talento e beleza. Davi era tudo o que Jonatas poderia almejar para si mesmo.


P.s.: Esta leitura de Davi e Jonatas não é uma "distorção da história". A Bíblia tem histórias que inspiraram os Judeus e os cristãos, e o fazem segundo cânones de leitura. Mas muitas interpretações são possíveis, visto que são textos de caráter literário. Davi é tradicionalmente conhecido como um grande rei e grande guerreiro. Contudo, entre nós é possível uma leitura no sentido da ampliação das características e das possibilidades deste personagem. É a época da diversidade, do indivíduo que pode narrar a si mesmo de diversas formas (saiba mais sobre isso: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/homossexualidade-heroica.html). Isto poderia ser problemático se pensarmos que um guerreiro ou um rei só podem ser donos de uma história unívoca, como se devessem guardar uma "Verdade". Mas um rei ou um guerreiro não podem ser assim, se forem ricos personagens. Não se forem personagens de magníficos livros, como o foram Davi e Aquiles. Portanto, ao invés de repor uma antiga visão sobre Davi e a bíblia, procure ler de outro modo.

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