quarta-feira, 6 de julho de 2016

A vontade de fazer o bem


Uma família de mendigos morando na frente do seu prédio. A cidade tem um nome "cidadão" para falar sobre eles: moradores de rua. Um tratamento social, ou seja, destinado a quem não se conhece e não se deve tratar mal.

Mas é possível morar na rua? Aquela família fez uma casa de papelões. A casa é montada à noite, e desmontada de manhã, pois ninguém pode ficar morando em local de passagem. À noite eles realmente moram lá. De dia, recebem olhares tortos de quem vê "mendigos".

Usei esta palavra para trazer os sentidos que vêm com ela: vagabundo, sujo, coitado, vítima, malvado, solitário, bêbado, doente, herói, etc. Esses sentidos a expressão "morador de rua" não traz.

Sentidos são formadores de climas entre pessoas. Levam a emoções, ideias e ações. Os sentidos do mendigo, contudo, dificilmente resultam em comportamentos diferentes do "social": os passantes olham com pena, com nojo, com medo, ou por esses motivos desviam o olhar, e seguem o passo. Essa frieza faz com que se fique, mesmo, com a expressão "morador de rua".

Ninguém para e se aproxima deles. Quando o faz, é de forma atabalhoada, com a mão tremendo de insegurança pelo bem ou pelo mal que está prestes a cometer. A mão querendo logo ser recolhida e as pernas querendo logo andar.

Em Santo Agostinho poderíamos dizer que a boa vontade, que é uma vontade da alma, que pode ser, por exemplo, a de fazer uma doação a um pobre, consegue por um momento fazer com que os membros se movam no seu intento. E que a má vontade, a resultante do eu que quer satisfazer a uma necessidade própria, que é a de se "salvar do mendigo", "agredir o mendigo" ou "jogar um pão no mendigo", não é da alma, mas dos próprios membros.

A alma tenta fazer sua vontade sobrepujar a dos membros, ou seja, a reflexão e os objetivos nobres tentam ser mais fortes do que a ação afoita e empregada para vontades que não podem se satisfazer. E as vontades do corpo são conflitantes entre si: da mesma forma que o braço se estica para o mendigo, ele treme e se recolhe rápido, enquanto a perna se aquece para correr.

Se você me perguntar o que fazer em relação aos mendigos que moram na sua porta, direi que faça o que tiver vontade. Com isso não estou sugerindo que você faça o que quiser com eles, deixar o corpo agir de forma invasiva ou bruta. Estou dizendo que sua ação depende da vontade que você sentir em relação aos mendigos e, ao dizer isso, ponho em relevo para você mesmo a sua vontade.

Faça o que tiver vontade. Qual a sua vontade?

Rute é uma personagem do Antigo Testamento. Havia um homem de Belém de Judá que, pela extrema carestia de sua terra, foi com a mulher e os dois filhos para os Campos de Moab, em busca de qualquer melhoria de vida. Em Moab, esse homem morre. Os filhos casam-se com mulheres Moabitas.

A situação daquela família, contudo, se agrava. Os filhos também morrem, deixando a mãe Noemi e as duas noras. Tendo perdido tudo, Noemi decide retornar a Judá. As noras falam da intenção de acompanhá-la, mas Noemi diz que aquele fardo é apenas dela. As noras, sendo jovens, poderiam conseguir outros maridos.

Uma das noras então se despede. Noemi, então, dirige-se à nora que permaneceu:

"'Veja: sua cunhada voltou para o seu povo e o seu deus. Volte você também com ela.'
Rute respondeu: - 'Não insista comigo. Não vou voltar, nem vou deixar você. Aonde você for, eu também irei. Aonde você viver, eu também viverei. Seu povo será o meu povo, e seu Deus será o meu Deus. Onde você morrer, eu também morrerei e serei sepultada. Somente a morte nos poderá separar. Se eu fizer o contrário, que Javé me castigue!'"

De volta a Judá, Noemi diz a Rute que um parente próximo dela é um grande comerciante na cidade. Havia, naquele tempo, um direito chamado "direito de resgate": ele dizia que pessoas pobres que precisassem vender os bens que possuíssem, de modo a obter algum dinheiro, tinham o direito a que os parentes mais afortunados tivessem a primazia para comprar esses bens. Deste modo, os bens não se perdiam completamente dos vendedores.

Esta lei existia para evitar abusos econômicos. Naquele momento, Israel buscava se organizar econômica, política e socialmente, de modo a que o povo não se esfacelasse, ou vivesse em relações conflituosas ou situações de opressão.

Noemi disse a Rute que Booz poderia comprar as propriedades dela. Rute pede para ir ao encontro de Booz. Rute encontrou o homem em uma plantação de milho, propriedade dele, coordenando o trabalho de muitos homens. Ela se pôs atrás de todos eles, e começou a catar as sobras.

O grande trabalho dela, mesmo com restolhos, produziu uma colheita considerável, que ela levou para a casa de Noemi. No dia seguinte, Booz novamente presenciou o grande esforço daquela mulher estrangeira. Ele disse que ela poderia servir-se da água dos outros, e ordenou a eles que deixassem mais espigas sobrarem para ela.

Naquela noite, Noemi diz a Rute que Booz, ainda pelo direito do resgate, também poderia adquirir ela mesma, Rute. Noemi a aconselha a esperar Booz comer, embriagar-se e deitar-se, para então ela ir deitar-se ao lado dele.

Na noite seguinte, Rute cumpre o plano. De madrugada, porém, Booz acorda assustado com aquela mulher. Ele diz que não tocará nela. Ele não se aproveitará de Rute, sabendo que Noemi possui um outro parente mais próximo do que ele próprio, com primazia no direito do resgate.

Ele enche uma saca de cevada para Rute e a faz sair antes de clarear, para que ninguém a veja. No dia seguinte, Booz conversa com aquele outro homem. Dizendo que, além do terreno de Noemi, ele deverá ficar com a nora dela, o homem declina no direito do resgate, afirmando que a união com Rute atrapalharia a herança dos filhos que ele já possui.

Booz então aceita comprar o terreno de Noemi. E para aceitar ter Rute como esposa, Booz diz ao povo que fará valer um outro direito de Israel: o do levirato, que diz para um parente próximo de um homem morto, sem filhos, casar-se com a viúva dele, de modo a que o nome dele não seja apagado.

Booz teve um filho com Rute, e a linhagem de Elimelec-Quelion pôde continuar. Aquela criança é herdeira das propriedades de Booz. E também pertence à linhagem de Elimelec-Quelion.

O bebê é enviado a Noemi, que o considera um filho. O nome dele é Obed, e ele será pai de Jessé, que será pai de Davi, que será rei de Israel.

Uma estrangeira foi abraçada por Israel. Javé fez com que a saída dela da casa dos seus pais, e o casamento que ela fez entre o seu destino e o da desafortunada Noemi, fosse recompensado. Pelo levirato aplicado junto do direito ao resgate, os bens que Noemi venderia a um familiar continuariam a ser diretamente dela. Isso porque Rute, mesmo sendo esposa de Booz, representava Quelion.

Ao decidir acompanhar sua sogra a Moab, Rute mostrou uma vontade maior do que interesses pessoais. Nada, exceto a vontade de fazer algo por Noemi, poderia explicar o desprendimento dela do seu povo, a ida para uma terra estranha e já sabida como sem recursos.

Rute agiu pelos planos de Noemi, planos estes que intencionavam não apenas salvar a própria pobreza, mas também daquela que insistia em ser sua nora.

Noemi levou adiante a ideia de que Booz comprasse os terrenos do seu filho. Mas viu que ele demonstrava apreço por Rute. Booz, contudo, não se deixou levar pela vontade de possuir aquela mulher. Antes procurou ser correto no encaminhamento do direito do resgate de Noemi, chamando o parente mais próximo dela. Se esse homem aceitasse adquirir tudo o que era do filho de Noemi, ela perderia, além da posse direta dos terrenos, também a linhagem do marido e do filho.

Para uma reorganização do mundo de Noemi, aquele homem abre mão do direito de resgate, e Booz o assume. A vontade de Rute e de Booz, a primeira em juntar-se a Noemi, o segundo em procurar a quem de direito cabia o resgate, não usufruindo da chance que lhe caíra no colo, de ter o terreno e Rute, são incompreensíveis se considerarmos o eu, seus planos e vontades.

Na primeira oportunidade que tem, o eu não titubeia em agarrar o que quer, seja uma espiga de milho, um saco de ouro ou uma bela mulher que venha se deitar com ele. E também, na primeira oportunidade que tem, o eu quer escapar de tudo o que lhe cheire a miséria, decadência, gente lhe pedindo coisas.

O eu não quer compromisso com nada que saia dos planos dele. E vê no estrangeiro, ou no desconhecido, uma ameaça de ruína. Na cidade somos desconhecidos uns dos outros. E tememos perder coisas, pela simples conversa com alguém. É um medo do compromisso que isso gera, da possibilidade de comprometer-se a ajudá-lo, caso perceba uma necessidade dele.

Rute se comprometeu com Noemi, mãe do seu marido morto. Booz se comprometeu com ambas, mulheres que ele conhecia de pouco a nada. Os habitantes de Judá reconheceram que Rute entregara-se ao que acontecesse com Noemi.

Cada um deles agiu não por vontades particulares, mas para fazerem o que lhes parecia o certo a se fazer. E o certo, aqui, é algo que definiria os rumos de cada um deles. Ele é assumido pela vontade da alma em fazer da vida uma situação de duradoura paz, ou melhor, e por exemplo, de equilíbrio entre ricos e pobres.

É isso que Javé quer. É isso que a alma tem vontade de fazer. Mesmo a uma alma que se veja como laica, a força da vontade de paz, de equilíbrio, de justiça e bem para todos é algo muito forte.

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