sábado, 25 de junho de 2016

Um presente para você

Durante uma aula, em um curso de graduação de uma universidade particular, o aluno exige que o professor novamente lhe explique a matéria, pois "paga a universidade, então paga ao salário dele". O filósofo alemão Peter Sloterdijk, na entrevista "What does a human have that he can give away?"(http://www.academia.edu/9185150/What_Does_a_Human_Have_that_He_Can_Give_Away_-_interview_with_Peter_Sloterdijk_2013_), afirma que em nossa cultura de produção em massa de diversos bens, como por exemplo a educação ou os alimentos, somos todos consumidores. E somos praticantes de uma ética erótica, que é a do inesgotável desejo de ter algo que sempre parece nos faltar. Somos como bocas abertas e carentes que vivem querendo que algo lhes caia dentro.

No caso da universidade particular, temos dinheiro. Então nos vemos no direito de que algo seja depositado em nossas bocas. Esticamos o braço para dar o dinheiro, e queremos conhecimento em troca. A relação é de consumo, não parece haver aí qualquer preocupação com desenvolvimento pessoal, enriquecimento espiritual. Diferente disso ocorreria em uma universidade pública, por exemplo, em que não haveria troca de dinheiro por conhecimento: o aluno veria a si mesmo como tendo estudado e passado em um difícil concurso, para estar lá. O valor pessoal dele estaria provado, e ele o apresentaria ao professor para ser visto por ele como alguém que mereceria assistir a sua aula.

Na descrição da situação da universidade pública eu usei o futuro do pretérito nas ações. Fiz isso porque estes verbos, para acontecerem, assim como o desenrolar daqueles fatos, requerem que os alunos cheguem àquela situação como tendo algo pessoal a dar para a universidade, para ser trocado pela aula. Eles não poderiam chegar como pessoas a quem falta algo, e que disfarçam isso com dinheiro. Mas não é assim que ocorre pois, entre nós, só chega à universidade quem fez bom ensino médio, o que envolve dinheiro. Então, este aluno também só é capaz de encarar uma aula como uma situação de consumo, proporcionada a ele não por ele ter algo de especial. Este aluno também é capaz de dizer que paga o salário do professor, por pagar impostos.

Segundo Sloterdijk, impostos são direcionamento de dinheiro a uma instituição primeiramente interessada em manter a si mesma, e cujo uso deste recurso em serviços públicos ou não é exatamente o que muitos gostariam que fosse, ou não é o mais eficiente. O fundo recolhido através dos impostos torna-se um dinheiro mal-utilizado, e utilizado sem o total conhecimento e aprovação do contribuinte. Deste modo, ninguém vê a si mesmo como contribuidor ao funcionamento de uma universidade pública. Essa instituição é gerida sem a participação ou ao menos o conhecimento dele.

Poderíamos tentar considerar, neste momento, os dons espirituais dos jovens como um certo bem que eles dirigem à universidade. E observamos isso. Mas também observamos a substituição da troca entre dom espiritual e boas aulas pela troca entre dinheiro e conhecimento. A troca de dons espirituais, que podem ser bom nível cultural, boa educação, bons valores, etc, por boas aulas requer que se esteja não em um clima erótico, de sensação de que algo falta e por isso precisa ser pego, mas em um clima timótico.

O thymos foi trabalhado principalmente por Platão, em A República: o homem pode ter um dentre três tipos de alma, que são a alma com a aptidão para desenvolver o intelecto, a propensa aos apetites e aquela que pode e deve desenvolver seu thymos. Na psicologia platônica, que pertence à cultura grega antiga, o thymos são os derivantes da ira, que vão desde o orgulho até a cólera. O timótico seria o disciplinado, treinado e orgulhoso soldado da República. Ele reconhece os seus talentos, regozija-se por realizar bem a sua função e propensão de alma. E ele quer o reconhecimento dos outros. Oferece seus talentos aos seus concidadãos, e em troca quer cumprimentos. Timótico também é o intelectual, que elabora uma ideia e se sente auto-recompensado ao fazê-lo.

Este aspecto psicológico encontra-se entre nós pouquissimo desenvolvido, visto que nem mais ouvimos falar nessa palavra (você já tinha ouvido falar em thymos?). Não damos valor ao orgulho, não temos muita clareza do que seja fazer algo bem-feito ou realizar uma boa ação, e sentir prazer com isso. Sloterdijk nos fala de empresários, nos EUA, que fazem grandes doações em dinheiro a Universidades. Não estão trocando dinheiro por conhecimento, mas por incremento desenvolvimental de comunidades. E o fazem em troca de reconhecimento social, mas sobretudo por orgulho próprio.

O filósofo sugere que comecemos a considerar incentivos a uma cultura de doações voluntárias. Impostos, coercitivos, têm sido acompanhados de perda de noção dos indivíduos quanto ao uso que é feito do dinheiro deles, e isso leva à falta de sentido que o funcionamento de uma universidade tem para eles. Doações, ao contrário, são uso dirigido de dinheiro, feito por quem sente que tem algo a dar e que gera tão bons resultados em universidades, hospitais, etc, quanto geram bem-estar aos doadores.

Uma cultura mais timótica significaria estudantes, que não são empresários, apresentando-se como aprendizes. A palavra aprendiz sugere alguém em formação tanto em uma área de saber e para exercer uma profissão, quanto integral, ou seja, cultural e comportamental. E todo aprendiz olha com orgulho para si mesmo. E sente que este é o mesmo olhar que o professor, seus pais e, posteriormente pessoas desconhecidas, lançarão para ele.

Estudantes, professores, pais, governantes deveriam buscar fazer algo bom, digno de orgulharem-se. Numa cultura assim, veríamos a nós mesmos como pessoas dotadas de algo especial que pode ser oferecido ao mundo. E este algo, na verdade, só o conhecemos ou o temos se o damos, como diz Sloterdijk, citando um dito de Lacan a respeito do amor: "você só o tem passando-o adiante".

Dar o que você tem de bom é dar essa mesma coisa de presente para você mesmo.

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