quinta-feira, 9 de junho de 2016

O mundo sou eu


O governo não é o que eu quero. Eu irei lá ensiná-lo a governar. O presidente deve me representar tanto que eu posso ir lá e falar por mim mesmo. Ele deve ser eu. Acabou-se a distância, não há representação, falar pelo outro. Não há saber que eu não tenha. Eu sei tudo, na minha generosidade cabem a aquarela de dores do mundo, e as trato antes de tratar a minha dor. Minha dor são as dores do mundo. Quem sou eu, senão esse mundão dolorido?

Então subo no palanque para falar de mim, que sou todos. É de se desconfiar de quem sabe, de quem estudou, professa, é técnico, governa. Joaquim Barbosa, Sérgio Moro, Janaína Paschoal sabem direito, mas não o justo. FHC sabe sobre sociedade, cultura e economia, mas é elitista. O governo dele foi elitista. Eles são teóricos, gente privilegiada que não sabe da vida. A vida é essa pobreza, inclusive pobreza de leitura, e essa riqueza de "lutas".

Quero intelectuais que tratem outros intelectuais como lixo, ao me dizerem uma frase para entender o Nietzsche. Uma frase para a política e uma para a cultura. O tamanho do discurso que cabe na minha língua, para ela repetir, colar na minha ação impulsiva. Meu limite eu quero que seja o dos intelectuais, o do saber. E gosto de presidente que acha certo pegar o dinheiro alheio. Gosto de quem não complica, neles eu me reconheço.

Falam para todos, o Pondé e a Tiburi. Falam como eu. Resumidamente, e contra o marxismo e o machismo. Reúnem muitos likes e followers, então é meu este resultado. Reunião de amigos que gostam de mim, pois gostam de quem é igual a mim.

Não há diferença entre intelectuais que não sabem e não-intelectuais que não sabem, como Bolsonaro e Lula. Eles não falam por mim: eles são eu, com a diferença de que têm mais exposição do que o meu perfil principal de facebook. Eles reúnem uma multidão, e me põem com o microfone na mão. A fala que vem deles é a mesma minha. Realizei meu sonho de ser presidente! De ser inteligente!

Não há mais saber, nem detentores do saber. Há "Mexeu com Lula, mexeu comigo", "Bolsomito 2018", "Fora Temer", "Fim da cultura do estupro", etc. Sobre cada um deles eu só não falo melhor do que aquela que sofreu o estupro coletivo, porque aí eu me sentiria mal por tirar-lhe a palavra.

A dignidade de alguém está no fato de conseguir falar, e falar para militar. A coisa que eu mais penso, naquele estupro coletivo, é na quantidade de gente que impediu a menina de dizer "não". Mas, no mecanismo de uma pessoa virar todas, e de todos os outros assumirem aquele mesmo rosto, a dor particular da menina virou ao mesmo tempo bandeira e foto de facebook.

Há uma sensação de unanimidade da opinião e do protesto. Então o detentor dos saberes e o reinvindicador de coisas é difuso, mas sempre o vejo com o meu rosto. Por isso as pessoas põem filtros de fotos no facebook, com causas: elas são eu, a fala de todos é a mesma, todos são eu e a fala é toda minha. Cada um tem essa sensação.

Mas, se a sensação de unanimidade é geral, a unanimidade não é um fato: Bolsonaro e Lula não dizem nem pedem as mesmas coisas. E não os pinto com as mesmas cores. Não pinto meu rosto com as mesmas cores, se sou um ou se sou outro. Mas de alguma cor que era de uma mulher que sofreu machismo, ou de um bolsominion, ou de um post meu cheio de likes, que viraram de todos, eu pinto o meu rosto.

p.s.: Este texto é um contraponto à conversa de Michel Foucault e Gilles Deleuze, intitulada "Os intelectuais e o poder", publicada no Microfísica do Poder.

Nenhum comentário:

Postar um comentário