quarta-feira, 8 de junho de 2016

No corpo: além e aqui


No segundo canto do Ilíada, de Homero, é contado que os gregos correram para pegar as naus a fim de retornarem para casa (1). É que a saudade das mulheres e dos filhos apertou, e a guerra não seria vencida por eles. Foi o que lhes dissera seu comandante, Agamêmnon, afirmando que Zeus tranquilamente faria a maldade de vê-los morrer aos milhares e sofrerem aquela ausência de nove anos de sua terra natal, sem recompensá-los em nada.

Hera mandou Atena impedi-los. A grande deusa dos olhos de plácida toura queria a vitória dos gregos. E Atena era a deusa do ânimo guerreiro. Atena solicitou a Ulisses que, neste momento, ele virasse o rei de todo o exército grego, como se ele fosse um procurador de Agamêmnon. O grande rei de Ítaca avisou aos outros reis, desesperados, que se eles realmente voltassem teriam muito o que temer de Agamêmnon, um rei maior do que eles. Agamêmnon se notabilizava pela sede e grande capacidade de granjear mais poder, pelos muitos territórios e homens sob seu comando.

Aos soldados comuns Ulisses chamou para fora do auto-comando para o qual as saudades os empurrara: haviam se desesperado quando foram lembrados de casa, dos que cresciam e morriam sem conviver com eles. Este auto-comando, impulsivo, para sair dali, deveria dar lugar ao comando de um rei. O que deveria vigorar entrar os soldados era uma única voz, e não milhares de vozes. Cada soldado não podia ser seu próprio comandante.

É como o filho adolescente que pega dinheiro e as chaves do carro, e sai tarde. Ele ri e se diverte com os amigos já pelo zap. O pai percebe isso, e avisa-o dos cuidados que precisa ter com a bebida e a direção do carro. O filho lança-se à diversão sem freios, é um auto-comandante movido pelos sentidos, pelo corpo. O pai atua aí como a sua razão auxiliar.

Ulisses faz os reis e soldados gregos novamente sentirem vontade de lutar por Tróia e Helena. A saudade apertou, mas seria vergonhoso partir sem conquistar nada. Este é o drama de todos nós quando ao mesmo tempo queremos e não queremos algo, queremos ficar tanto quando queremos sair. As palavras iniciais de Agamêmnon, que na verdade intencionava testar o quanto aquele exército queria lutar e vencer, mostraram aos soldados as razões que eles tinham para partirem. E Agamêmnon contava com aquelas palavras de Ulisses mostrando-lhes as razões para permanecerem.

Com o despertar da saudade o impulso por voltar, dos gregos, ocorreu rápido. Mas durou um momento, e então eles calcularam que valia mais vencerem e fazerem esta volta com glória. O homem antigo tem um órgão que o moderno não tem: o thymos (2). Ele se apaixona por alguém, é possuído por Eros. Deseja possuir este alguém. Mas, por thymos, o que o interessa não é possuir o seu amado, mas ser por ele reconhecido e, com menos intensidade, também ser reconhecido pelas demais pessoas. Ele se orgulha de si mesmo e quer louvores.

Em nome de eros, os gregos quiseram retornar para casa e reaver seus queridos. Mas por thymos eles preservaram-se na luta, pela promessa de vencerem e terem glória. Calcas havia visto uma assustadora serpente devorar nove pardais, e logo em seguida desaparecer. Na interpretação do vidente, nove foram os anos que eles consumiram naquela guerra ma,s assim como não havia mais serpente, não havia quem lhes tirasse a vitória no décimo ano. Ulisses, conhecido pelos seus mil ardis, soube aproveitar esse vaticínio favorável para tocar o thymos daqueles homens.

Pela psicologia platônica(3), o homem pode ter três tipos de alma: uma com o intelecto mais desenvolvido, uma com o thymos, o senso de justiça e a necessidade de orgulho mais desenvolvido, e outra com os apetites, o desenvolvimento da capacidade de observar o suprimento das necessidades corporais (como, por exemplo, faz um cozinheiro). Aquiles se imortalizou por sua cólera, ou seja, por um certo funcionamento do seu thymos. Ulisses se imortalizou pelo seu intelecto. No mundo homérico, a parte da alma ou a parte do corpo eram o destaque: Íris de pés velozes, Hera rainha com olhos de plácida toura, Zeus detentor da égide, Aquiles de louros cabelos, Ájax Oileu de longa lança, etc.

Após Ulisses convencer os soldados a permanecerem lutando, surge Térsites. Homero descreve o corpo deste homem: feio, de cabeça pontiaguda com uma lanugem em cima, ombros e costas curvadas, estatura baixa, coxo em um dos pés. Enquanto o homem em Homero não possuía um corpo, mas uma parte de corpo de destaque e que lhe fazia ser memorável(4), tocar o eterno, Térsites é aquele que está preso ao seu corpo inteiriço e degradado. Térsites fala impropérios a Agamêmnon, e Ulisses usa o pesado cetro para fazê-lo cair no choro.

O ser memorável aproximava o homem dos deuses, afastava-o do tempo da mortalidade. Nestor é um ancião mas, por ser excelente em auxílio (no vocabulário de Homero, um grande conselheiro), fazia-se presente na guerra. Justamente por ser velho é que ele valia muito. O jovem que quer beber e dirigir a mil por hora está curtindo suas sensações corporais. É um corpo inteiro se embriagando de álcool, sexo, música e velocidade. O pai não está nessa, e imprime um comando naquele que está se auto-comandando pelos impulsos, não pela razão. Nesta hora vale a velha hierarquia do "quem manda mais".

O homem oscila entre a busca por proteção e a busca pela liberdade. Ele quer parâmetros de vida, mas também quer decidir sobre si mesmo. Em plena "sociedade da leveza" (5), ele quer a âncora de uma bandeira, um relacionamento, uma identidade, uma corporeidade. Se por um lado por ele passam infinitas informações, por outro lado ele é o velho corpo.

Temos aplicado uma pedagogia que busca o comando da razão sobre o corpo. Inicialmente o que vale é o comando dos pais e da professora. Depois será o do indivíduo sobre si mesmo. Falta atentar-mo-nos para a vitória de Ulisses sobre Térsites, ou seja, a do talento que leva à excelência sobre a degradação do corpo.

Porque não deixarei meu filho se embriagar? Porque direi para o meu filho pequeno não passar o dia no pc, e não comer todo o biscoito? Porque as informações e estímulos, quando passam por mim, em mim geram vontades, e a vida baseada na busca pela satisfação de vontades é a manutenção de si mesmo na corporeidade. Se me toco, faço sexo ou consumo algo para satisfazer a uma vontade, e faço essas coisas para sentir que estou aqui, que tenho um corpo real, esse corpo real sempre carecerá de satisfação. Carecerá de algo mais. Esse algo mais, apontado pelo desacreditado humanismo, pode estar no intelecto, na espiritualidade, em suma, em tudo aquilo que aponta para fora deste lugar aqui (6).

1 - Homero. Iliada, Canto 2. Companhia das Letras-Penguin.
2 - Ghiraldelli. A Subjetividade Timótica. (https://www.academia.edu/15531117/Sloterdijk_subjetividade_tim%C3%B3tica)
3 - Platão. A República. Edipro.
4 - Esta ideia de que em Homero não há corpo, mas partes do corpo, e que a atribuição de glória ao homem era feita a uma excelência relativa a elas, surgiu no hangout do Centro de Estudos de Filosofia Americana, do dia 05/06/2016, coordenado pelo filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Ainda não foi publicada.
5 - http://ghiraldelli.pro.br/icaro/
6 - Baseio-me, aqui, no texto "O Corpo Utópico", do filósofo Michel Foucault. Neste texto inicialmente é apresentada a idéia de que o corpo é uma prisão, da qual tenta-se fugir através de utopias (lugar-nenhum), que negam esse corpo. Em seguida, assume-se que as utopias, apesar de voltarem para negar o corpo, surgem dele, tomam suas características como o modelo das utopias. Também há a ideia de que o homem não está onde está o seu corpo, mas em seu pensamento, um lugar-nenhum ou lugar-fora daqui. Por fim, Foucault mostra que o lugar em que estamos é o nosso próprio corpo, quando somos vistos e tocados por quem amamos. Esse olhar e esse toque nos diz que estamos bem ali, nos faz sentir a nós mesmos, e isso realiza a utopia do corpo. Eu faria o seguinte comentário: para que exista uma utopia do corpo, um fora do aqui, é preciso que haja um momento de saída do corpo, de se imaginar algo além dele, das suas sensações e vontades. Tendo havido este momento, um corpo pode ser tocado por outro corpo, e isso ser a realização daquela utopia. Ao passo que, se se mantém atado ao corpo, buscando suprir as vontades dele, não há formulação de qualquer utopia, não há qualquer lugar-nenhum.

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