quarta-feira, 22 de junho de 2016

Corpos vivos e corpos mortos



Em muitas escolas, à entrada, as crianças cantam o Hino Nacional. A professora exige que ponham a mão sobre o próprio coração. Alguns dão uma dançadinha, cantam um pouco enrolado, com voz mole. Mas todos permanecem mais ou menos em fila. O Hino os embala, e a impressão que se tem é que se trata de algo maior do que cada um deles.

Já para os jovens, um número menor de escolas pede que cantem o Hino. Mas as há. Contudo, por um fato dito pelo filósofo americano Richard Rorty, e citado por Paulo Ghiraldelli Jr em seu livro a ele dedicado ("Richard Rorty", Editora Vozes), na escola os jovens começam a levantar questões sobre o que aprenderam durante a infância. Esta será a marca da universidade, mas já se faz, por exemplo, na escola, perguntas sobre os interesses de Cabral ao vir ao Brasil. Também se pergunta pelo tal "descobrimento", uma vez que já existiam habitantes aqui. A história do Brasil, afinal, produziu um Estado, uma população culturalmente muito diversificada, mas também produziu morticínio de índios e escravização de negros. Isto para o que se sabe no nível da crítica feita no segundo grau.

Temos visto muitos casos de alunos desrespeitando professores em sala de aula. Estes casos incluem os jovens que batem em professoras, e universitários que tentam forçar o professor a aderir a uma greve (https://www.youtube.com/watch?v=OUmKfiVHcPc), ou que apagam o quadro enquanto o professor escreve (https://www.youtube.com/watch?v=lpsQu29r55Y). Mas também há situações em que se observa a permanência do respeito do aluno em relação ao professor e à escola.

Por "respeito ao professor e à escola" refiro-me ao comportamento, diante deles, diferente do que se tem quando se está em casa ou na rua, com os amigos. Falo de um certo comportamento auto-contido, que permite ao jovem manter-se atento para escutar e aprender com o ambiente escolar. Este comportamento não inibe o jovem de apreender à maneira dele o que foi desde cedo ensinado. Se desde criança o jovem canta o hino, quando jovem ele terá tudo para mostrar a sua própria versão.

Este vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=IM8Dj0DDScE) mostra alunos de uma escola da Paraíba que fizeram um remix do nosso hino, vertendo-o para o funk, enquanto dançavam a dança chamada "passinho". A música começa como todos conhecemos, mas logo se transforma, junto dos movimentos dos jovens. Este caso mostra o jovem expressando à maneira dele o que aprendeu. Mostra, também, que o outro olhar, a crítica, pode ser feita tanto num texto como num remix. Ambos mostram que a narrativa ou o ritmo podem ser diferentes.

Apresentando-se em torno do Hino Nacional, com seu corpos coreografados, os jovens mantem-se no mesmo ambiente que todas as outras pessoas que ouvem o Hino e sentem-se filhos de uma pátria. Ao ouvirmos a voz mandona e carinhosa do pai, é normal requebrarmos. Estamos envoltos por uma sonoridade que nos abriga. Imagine-se em Portugal e ouvindo o hino deste país, e não mais o do Brasil? Mesmo que, porventura, você esteja em um bairro parecido com um do Brasil, ao ouvir o hino diferente você certamente se sentiria fora de casa. Somos filhos de uma pátria e temos uma linguagem corporal e musical para experienciar e expressar isso.

Em Manaus, por ocasião de uma cerimônia com a tocha olímpica das olimpíadas de 2016, soldados fizeram uma exibição com uma onça-pintada. Quando tudo estava encerrado, pelo comportamento agressivo da onça os soldados acabaram matando-a com um tiro de pistola. Em propagandas e pronunciamentos oficiais, a imagem do exército é de que ele protege as coisas do Brasil, dando prioridade a quem mais precisa de ajuda, como vítimas de calamidades e animais em extinção. Eles têm treinamento, são exercitados para a ação na água, na terra e no ar, além do manejo de armas de fogo, para cumprirem aqueles objetivos. A eficiência e o respeito à nossa moral aparecem, nas propagandas, como patentes nas ações e no comportamento de um militar. Melhor do que ninguém, eles devem saber cantar e por a mão sobre o coração ao som do Hino. Devem sentirem-se em casa, ao ouví-lo, e amarem as coisas do Brasil.

A morte de Juma, no entanto, chega-nos como mais uma violência que esta instituição, que inclui a Polícia Militar, é capaz de perpetrar. Todos temos histórias de abuso de autoridade de militares. Com armas na mão, eles parecem antes satisfazerem seus desejos agressivos do que atuarem como recomendou Platão, na República, ao guardião: tal como o bom cão, o guardião deve ser amável com os concidadãos e agressivo com o inimigo externo. Não sentimo-nos seguros próximos a um militar do nosso país, pois ele, se não comete violência contra nós, pronuncia-se a favor dela.

Aqueles jovens, ao dançarem, reverenciam o Hino. São alegres como a boa imagem que temos dos brasileiros. São vivos como onças-pintadas.

Já o corpo militar, esse cheira à morte.


P.s.: Se você acha que o militar agiu corretamente ao matar a onça, saiba que a disposição em defender a vida nos faz pensar que este acontecimento deveria e poderia ter tido um outro desfecho. E a disposição para a morte faz com que apenas se busque justificar o que ocorreu. Quem defende a morte, além de mau, não pensa, não vai além das situações. Em suma, é burro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário