sexta-feira, 29 de abril de 2016

O livro sagrado


Talvez você se considere um bom leitor. Isso quer dizer que você lê muitos livros, ou bons livros? Não quero escrever, aqui, sobre você, mas sobre livros. E não quaisquer livros: sobre livros que estão acima de tudo.

Os cristãos consideram a Bíblia a revelação da palavra de Deus aos homens. A história da libertação de um povo da escravidão no Egito dá o tom de muitas das outras histórias desta reunião de livros. Através de Moisés, Deus sobrepujou o poder do Faraó, e também conduziu pelo deserto e deu uma legislação para o seu povo escolhido. Acima do poder político e econômico há o que diz Deus, ou melhor, a Bíblia.

As aventuras de Aquiles e Ulisses eram contadas oralmente, na antiga Grécia. A história do seu povo e da sua cultura, a narrativa formadora do seu ethos eram ouvidos pelo homem na rua, que se formava cidadão grego.

Voltando à Bíblia, Santo Agostinho, no século III d.C., lia com admiração o livro sagrado. Entretanto, segundo disse nas Confissões, o bispo-filósofo não conseguia entregar-se a Deus, isto é, ele permanecia colocando a busca por honra, dinheiro e casamento como mais importante do que a busca por Ele. O problema disto é que estas coisas que ele amava são corruptíveis, e amá-las fazia sua alma também ser corrutível. Amar ao incorruptível Deus tornaria a própria alma também incorruptível.

A Bíblia, a Ilíada e a Odisseia apaixonam seus leitores, como se através deles uma força passasse de quem as escreveu para quem os lê, cativando-os e fazendo-os ao mesmo tempo sentirem ciúmes dos livros e quererem que outros também conheçam o quanto eles são especiais.

Em um vídeo recente (https://www.youtube.com/watch?v=VcKVkxJLkAE), Janaína Paschoal, professora de direito da USP e autora do pedido de impeachment da presidente Dilma Roussef, afirma dedicar sua vida à defesa da Constituição Brasileira. Ela quer que todas as crianças brasileiras aprendam e amem este livro acima de tudo. Ela lembra da ideia liberal que o norteia, de que ele garante o direito à diferença religiosa, cultural ou sexual. É um livro que está acima de cada prática ou gosto particular, garantindo que se possa ser indivíduo.

No vídeo, Janaína ergue o livro acima da própria cabeça, e fala entusiasmada. Na política, na mídia e nas universidades há indivíduos que falam sem entusiasmo. São ladrões frios, repetidores de notícias ou pessoas com discurso velho. Para eles, a razão deve vir apartada da emoção, e o discurso da Janaína soa como histeria. Janaína é bem formada, e domina a sua área. Ela fala emocionadamente sobre os ideais que defende, através do seu saber e prática, e estes são a justiça e a liberdade, a começar pela liberdade de pensamento.

Falando especificamente da universidade, além do professor desanimado há o professor entusiasmado. Falo de um desânimo e um entusiasmo que vem deles mesmos, e não dos livros. Estes professores colocam seus mal-estares pessoais à frente dos livros. Livros que poderiam inspirar ideias e circulação sanguínea novos são lidos com a cabeça cheia de ideias velhas, e sendo usados como justificativas para militâncias à esquerda ou à direita. A militância vem antes da leitura, para estes professores e seus grupos.

Estou preparando um evento em que se lerá a Ilíada. Estudantes de psicologia de uma universidade pública foram convidados mas, dentre eles, um grupo disse que não estuda cultura europeia, apenas estuda cultura afro. Digo que a universidade deve ser lugar de estudar, não de militar. Deve estar à salvo dos interesses políticos e das disposições pessoais de quem quer que seja. Deve ser um lugar a serviço da leitura e do encantamento pelo livro. Através dele, antes de sermos heteros ou gays, negros ou índios, somos humanos. E, sendo humanos, podemos ser o que for, com liberdade. Seremos militantes melhores. Por essa vivência do humano, através do livro, podemos falar de nós mesmos e, como as diferenças vêm depois da leitura humanizadora, podemos falar delas, também.

Há grupos de feministas que proíbem homens de falarem sobre mulheres. Há este grupo negro se proibindo de se encantar com os clássicos europeus. Há professoras dizendo "Lobato é bom, mas...". Estas pessoas não sabem o que é ler. Não foram fisgadas, ou se esqueceram de como é ser tomada por um livro e deixar de lado o que pensava antes, o que gostava e o que se era. Estas coisas que acontecem ao apaixonado pela beleza no homem, também acontecem com o apaixonado pela beleza no livro.

Só esta paixão livrará aquele que se acha diferente, da prisão da uniformização.

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