sexta-feira, 29 de abril de 2016

O herói que ninguém viu


A ideia de inferno serve para dar um desfecho à vida. A de céu também. O homem do Antigo Testamento vivia num tempo cíclico: um mal-feito a mim deverá ser vingado ou por mim ou por um descendente meu. Caso fizessem algum mal ao Caim desterrado, o retorno seria sete vezes maior. Um mal contra um descendente dele, seria cobrado setenta e sete vezes mais.

Moisés ouviu uma lei mais amena, de Deus: o preço a ser pago era o mesmo do dano causado, sem multiplicação. Mas ainda se transmitia o mal, por herança. Nós somos da nova aliança, da lei do amor aos nossos inimigos, do "bola pra frente". Nossa história tem acontecimentos inesperados, muitos desagradáveis. Com a ajuda de Deus, perdoamos uns aos outros. O mal ganha contorno.

Quando não há mais Deus, o mal fica sem contorno, espalhado pelo espaço. Em tudo respinga nossa má graça, mau destino, como conta Cioran. O mal incontornável só se dissolveria no inferno. Ou só se contornaria no céu, se Deus ainda existir em algum lugar que não na Terra.

Hoje vi um rapaz se abaixando e levantando, à cata de folhas de amendoeira. Ele não varria, o que daria o mesmo resultado, no mesmo feito. Sua esperança era que o porteiro que assistia ao seu esforço de sobe e desce considerasse o sobe e desce o seu feito. Logo o chão estaria novamente cheio. "Um herói de energia, de limpeza", mesmo que burro.

Tomar o caminho mais longo aumenta o feito para quem testemunha. "Ele não precisava ter se esforçado tanto. Que herói!". A história que esses olhos externos vêem, faz um "Ele". O herói de livros é um Ele. O autor do esforço sem sentido, e o leitor quixoteano, tornam-se Eu. Eu entusiasmado, como diz Sloterdijk. Ou o Eu pode ser feito como o deprimido. "na depressão, o indivíduo esgota-se na tentativa desesperada de querer aquilo que não quer" (Sloterdijk. O Estranhamento do Mundo. p.39).

Os Eus não querem morrer, mas manter-se na honra do heroísmo ou da miséria suportada. Um homem que vive de consertar as paredes, os canos, os fios, o carro de casa, de levar a esposa e as vizinhas ao médico, disse para mim que é muito ocupado, tem feito muito, mas que tal só seria notado se as coisas fossem deixadas por fazer. "Ele morreu, então, pois não está mais aqui quem fazia isso tudo".

Para ele, ele é um Eu, tem entusiasmo. Mas os outros não percebem, não presenciam todos seus feitos. Então o Eu entusiasmado, que quer ser herói como o Herói sobre o qual leu ou ouviu, corre o risco de não ser mais do que um herói para si mesmo, como o Dom Quixote.

Dizendo para mim tudo o que fazia, este homem queria me mostrar que ele é realmente um herói. Não o satisfaz a possibilidade de que Deus o reconheça, e deixe-o entrar no céu (ele acredita mesmo em Deus?). Mas Deus o livre de que o Diabo o tenha notado, e gostado dele!

8 comentários:

  1. Que bela maneira de encher uma página sem colocar nela praticamente nenhuma informação. É de fato um feito heroico trazer à existência tantas linhas de texto com o cuidado meticuloso de não deixar deslizar para dentro delas praticamente nada que seja de qualquer utilidade ou interesse. Ora, utilidade e interesse?! Que dirá utilidade e interesse quando sob qualquer medida da ciência da informação pode-se determinar que, em todas as 32 linhas do discurso composto, praticamente não se encontra nenhuma informação, seja ela útil ou não! Que esforço ercúleo deve ter enfrentado o autor para conseguir uma obra de arte que é não mais do que uma casca sem nem espessura nem conteúdo - chega a maravilhar qualquer leitor que tal estrutura não desabe sob o próprio peso!
    Meus mais efusivos parabéns ao autor!

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    1. E você, Zé Anônimo, que gastou todas as suas linhas dizendo a mesma coisa (que eu não disse nada), o que merece?

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    2. Merecer não sei, mas me agradaria se supostos filósofos ao menos entendessem de ironia fina.

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    3. Pois é realmente irônico você dizer que eu não digo nada, sem dizer nada. Valeu a risada, Zé Anônimo.

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    4. Sim, essa é a ironia, parece que você não entendeu a intenção ainda. Deixa eu desenhar pra ver se você entende: fiz uma sátira do seu estilo prolixo (ênfase em "lixo"), que fala muito e não diz nada, no meu próprio comentário, exatamente pra demonstrar como é ridículo e pedante.
      Ficou claro agora?

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    5. Ah, agora a sua burrice foi intencional, irônica! Melhorou a piada, Zé Anônimo. Você é bom nisso.

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