quarta-feira, 2 de março de 2016

Vamos rir disso tudo, um dia.


O garoto estava no quintal. Comia jabuticabas, ouvindo, um pouco longe, a voz do moleque da outra casa. Lembrou-se das histórias que ouvira dele: de quando subiu num coqueiro, de quando deu um beijo na professora bonitona, de quando passou duas semanas fora de casa. Essas coisas podiam ser verdade. O que a mãe achava? O que as outras crianças achavam? Dependendo do jeito, dava para fazer. Será que a corda do pai, a casca do pé e a própria coragem aguentam o peso dele, no coqueiro? Pensou a sério.

Anos depois, ser advogado é mesmo o que ele quer? O direito é legal, come os grossos livros com os colegas, saboreia Maquiavel, Locke e Kant. O estágio já realiza o atravanco que sofrem os processos, uma injustiça com a justiça. Não dá para ser professor da matéria, pensador, palestrante, falar só do que deveria ser, e falar mal do que é? E esse governo, que já tá impossível de apoiar? Vão dizer, ele vai dizer para ele mesmo que votou e depois mudou de opinião. Mudou. Ele votou, mas não precisa ser o Cara que Votou.

As coisas que os outros lhe diziam, quando ele era criança, e as que hoje lhe dizem, o raciocínio que teve sozinho e o que está em um livro, o medo do escuro e o medo de se achar volúvel, a certeza inicial e agora a vontade de mudar, valem o mesmo. As ideias resolvem as questões do momento em que surgem. As emoções e ações também, e isso encerra sua validade. Encerra no sentido de que guarda e conclui. O momento passa e torna-as fúteis. A consciência não aumenta, de época a época. Quando é sincera, a consciência vence as próprias ingenuidades, e vai se achando livre até que descobre novas ingenuidades. O tempo decorrido entre uma vitória e outra sobre a ignorância é justamente a passagem de uma época a outra.

Uma criança mistifica a causa de algo. A professora ensina diferente. A criança vai tendo experiências, e sabendo de novas possibilidades de causas para aquilo. Mas mantém a mistificação, parte por apego, parte por apego ao que ganha com a mistificação. Estuda filosofia, teologia, matemática, ciências humanas. Depois de explicar a matéria para uma colega, ele apresenta a causa não refletida. Ocorre de esta colega também não ser totalmente crescida, e topar a mistificação.

A consciência que não é curiosa, não lança hipóteses para o que é curiosa, não vê seus acertos e erros, e se modifica, não é rigorosa. Mantém uma verdade, fazendo o tempo não passar. É como se o garoto ainda comesse jabuticabas no pé, mesmo estando de terno. Usa, com o cliente em dificuldades, aquela explicação mistificadora. Não era o melhor que podia dar a ele: se tivesse reunido teorias, o clima do lugar, o que ele próprio sente e o que a empatia dele com o cliente podem lhe informar, teria dito algo útil e importante. E que, com o próximo cliente, não valeria mais nada.

Crianças pequenas costumam dizer: "quando eu era pequena". É como se cada aprendizado deixasse uma era para trás. O que a criança pensa é, em grande medida, determinado pelo que ela sente. Uma ideia se absolutiza com o absoluto de uma decepção, uma frustração, uma expectativa ou uma grande alegria. Um adulto pode considerar determinado livro o seu grande mentor, pois este, mais do que lhe dar o que pensar, deixa-lhe num clima que não se quer que termine.

Não querermos que as sensações gostosas terminem. E, convenhamos, também não queremos que algumas sensações ruins passem. Elegemos, então, como a verdadeira razão, o melhor amigo, a comida preferida ou o grande livro aqueles que proporcionam isso. Mas uma clima emocional é como um fenômeno climático da atmosfera: impressionam pelo tamanho e vida própria, mas passam. O amigo torna-se indiferente, a comida fica sem graça, o livro vira coisa do passado. "Como pude ser tão besta?" "Virei a página."

Você ganhou um presente novo, é o melhor da turma, está apaixonado, se formou, é um grande empresário, é o Presidente da República: não se preocupe, tudo isso vai passar. O velho que passou a vida abraçando e despedindo-se do que quis, ri da ironia disso tudo.


P.s.: Inspirado em "O cenário do saber", de Cioran.

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