domingo, 6 de março de 2016

O espírito (vontade) e a alma (razão) em Santo Agostinho


Agostinho perguntava a Deus o que era ele próprio, Agostinho. Uma pergunta que interrogava sobre o homem, e sobre o ser que Deus ordenava que o amasse. Para responder a esta pergunta, Agostinho fez um exame rigoroso dos crimes do seu coração. As confissões eram contra si mesmo! Ímpio, o coração de Agostinho, quando este era jovem, errava distante de Deus.

Agostinho não se lembrava das coisas que fizera quando bebê. Entretanto, ouviu outras pessoas falando das malícias que os bebês fazem. E também fez suas próprias observações de bebês. Pôde, então, deduzir os seus próprios mal feitos. Quando bebê, seu corpo desejou comer, beber, receber. Ele não tinha os meios de exprimir estes desejos a quem poderia satisfazê-los, pois os desejos estavam dentro dele, e as pessoas estavam fora. As pessoas não o compreendiam. Ou, então, simplesmente achavam melhor não satisfazê-lo. Agostinho chorava, com a intenção de vingar-se dos insubmissos.

Que outros pecados ele cometera, nesta época? Em ansiar pelos peitos ricos da sua mãe, buscando alimento? Se ele, hoje, ansiasse desta forma os alimentos que gosta, seria repreendido. Ao crescer, o homem joga fora a sofreguidão do apetite. Ele pôde ter recebido reprimendas, enquanto bebê. Mas não as percebia. Ao contrário, encolerizava-se contra os pais e outras pessoas livres e sensatas, por não se curvarem aos seus caprichos.

“A debilidade dos membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças.” (p.34) Agostinho viu um menino no peito de sua mãe, olhando encolerizado o irmão que se alimentava junto dele. A cólera dominava o pequeno rosto. Mães e amas têm suas maneiras de esconjurar esse mal. Agostinho gostaria muito de ser exato em suas confissões, saber os males que praticou. A primeira idade, contudo, escapava-lhe totalmente do conhecimento. Em pecado ele nasceu ou foi alimentado pela mãe? Está oculto nas trevas do esquecimento.

O aprendizado da fala de Agostinho deu-se com a observação atenta dos que falavam. Alguém pronunciava uma palavra, enquanto movia o corpo para algo. Agostinho percebia a existência de um nome para um objeto, e determinada afeição da alma de quem fala, em relação a ele. Os movimentos nos olhos, os gestos e o tom da voz indicavam se o objeto era solicitado ou rejeitado por quem falava. Agostinho retinha estas informações, e passava a domar a expressão da própria boca e corpo. Não mais exprimia os sentimentos do seu coração por meio de gemidos, gritos e movimentos diversos do corpo. Eles não estavam sendo eficazes, no interesse de Agostinho em dobrar os outros à sua vontade. Satisfazer à própria vontade era o importante para Agostinho.

Adolescente, ele queria agradar aos amigos. Devia ser visto como alguém interessante, e espalhava-se em situações de satisfação de desejos. O desejo o fazia arder. Ele competia com os amigos, em ignomínia, devassidão. Seria vergonhoso ter vergonha e recuar. Certo dia, em grupo, furtou peras da árvore de alguém. Não teve o intuito de comer os frutos, pois ele mesmo os possuía em casa, e em melhor qualidade. Mordeu uma pera e jogou as demais fora. Ele queria desfrutar era do roubo em si, a sensação de fazer o errado. Falando aos amigos, inclusive, deixou seu feito mais grandioso. A malícia era o motivo de si mesma.

Mas o erro de Agostinho era mais abrangente do que o episódio do furto. O interesse em peras, ou em ter bom desempenho nas aulas de retórica, era uma dispersão por entre bens inferiores. Estes bens inferiores porventura podiam até ser bons, mas buscando-os o homem abandona bens mais elevados, como a Verdade de Deus. Apenas ela lhe traria unidade, enquanto as coisas lhe dispersavam e, por um dia deixarem de existir, levá-lo-iam a ser um nada.

Outro prazer extraído do furto foi o consórcio com os amigos. O atrito de almas atiçava ainda mais o fogo da cobiça pelas coisas. A cumplicidade dos pecadores criou uma falsa unidade entre indivíduos dispersos. Cometendo uma vez um crime, ocorre a consciência culpabilizadora. Havia também o medo de ser pego pelos homens, e a persistência da pobreza, mostrando a futilidade do furto. A honra, o poder e a riqueza que eles prometiam compensavam o medo, a desonra e a pobreza.

“Tive ao menos o gosto de lutar pela fraude contra a Vossa lei, já que não o podia pela força, a fim de imitar sendo cativo, uma falsa liberdade, praticando impunemente, por uma tenebrosa semelhança de onipotência, o que não me era lícito?” (p..60 e 61) Imitação perversa de Deus. Deus deveria ser seu porto-seguro. O homem que tem mulher já encontrou o seu porto. Por isso, ele deve voltar-se às coisas do mundo, para oferecer o melhor à mulher. Deus é o firme apoio para a alma. Longe dele a alma peca, busca algo puro e transparente, mas em vão.

Os seres nascem e se esforçam por existir. Quanto mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para não existir. O fim de um ser dá lugar ao nascimento de outro. Cada um é parte de um todo, mas esse todo não é visto pelas partes que o compõem. As coisas caminham para deixar de existir. O homem, contudo, prende-se a elas pelo amor. Sua alma deixou-se seduzir pelos sentidos do corpo. Ela quer descansar no que ama, mas o que ama é passageiro.

Melhor do que cada coisa é aquele que as fez todas, sendo ele mesmo o todo, não a parte. Cada beleza encontrada no mundo provém dele. É justo, portanto, que se o ame mais do que tudo. E é mais seguro, pois nada veio antes ou virá depois dele, pois Ele é aquilo que não passa. Viemos dele, quando ele desceu ao seio da virgem. A união entre o Espírito Santo e a carne mortal fez com que esta deixasse de ser mortal. Ele não pôde permanecer junto de nós, e subiu. Erramos pelo mundo. Ele passou a aguardar o dia em que fecharíamos os olhos do corpo, e o encontraríamos em nosso coração. Então subiríamos para junto dele. A morte do homem foi suplantada pela abundância de vida.

Ao não amar as coisas do mundo pela pertença delas no eterno, mas pela estima que elas têm entre os homens, o homem enferma a sua alma. Agostinho louvava comediantes, mas, se ele tivesse a arte deles, iria preferir manter-se oculto aos demais homens. Nas Confissões, fez-se a pergunta: Como pode amar em alguém o que repele para si mesmo? Também amava professores e, tivesse a arte deles, iria querer ser celebrizado. Amava para si o que via como digno de honra, e não exatamente o que possuía méritos.

O que os homens consideram grande, louvável, era o que atraía a atenção de Agostinho. Um imã para o espírito dele, que se deixou levar pela paixão. Os prazeres carnais ocupam o espírito, produzem nele afetos. O espírito assim afetado atira-se contra a alma, sede do atributo da avaliação, no homem. A alma contaminada pela viciosidade do espírito comete erros, falsas opiniões. Avalia o que lhe acontece a partir dos afetos, do domínio do espírito, e não da razão.

A morada do espírito, a vontade e os afetos, é o incorpóreo. Perdido no corpóreo, o espírito se agradava com o conveniente, não com o belo. Agostinho define o belo como o que agrada por si mesmo, e o conveniente como o que agrada pela acomodação a alguma outra coisa. A música é bela por ela ser bela em si mesma, não como um meio para cumprir determinado fim. Já um sapato não pode ser belo, mas deve ser conveniente. A alma de Agostinho, do jeito que estava, era incapaz de fazer esta distinção, enxergava apenas o que lhe comprazia os sentidos.

A alma não é da mesma essência da verdade. Para distinguir o belo em si, para participar da Verdade, ela deveria ser ilustrada por outra luz, que não a dela mesma. O que é belo é belo por participar de Deus. Ele as criou, as coisas dele vêm e nele permanecem. A alma deixa de perceber isto, atendo-se à utilidade delas. As características físicas das coisas deixam de existir, encontram um fim. Só no artista divino elas são estáveis. O amor a Deus é uma retribuição pelo que ele oferece ao homem. Ele está no íntimo do coração do homem, e este deve escutá-lo.


Este é um estudo dos capítulos I a IV do livro Confissões, de Santo Agostinho. Utilizei a versão da editora Vozes, ano 2011.


P.s.: Este não é um texto sobre religião, mas sobre uma teoria psicológica.

Um comentário:

  1. Muito bom Thiago ! No existencialismo,tudo isso está implícito,sendo a parte que mais interessa à existência humana.

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