quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Livre para cuspir


"Lúcido" é um adjetivo que damos a velhos. "Ele não fala besteiras. Ele sabe o que faz, não precisa ir acompanhado nos lugares. Pode ser deixado sozinho. Pode ser deixado livre." Fazer uma caminhada, assistir à novela sozinho é considerado ser livre. O indivíduo se autodetermina. Não perguntamos se, em casa, ele segue o ethos, os hábitos e costumes do seu povo.

Dividimos os hábitos e costumes entre públicos e privados. O privado é o ambiente dos comportamentos opacos, fora do total conhecimento dos outros. Ao falarmos sobre eles, atemo-nos ao que é convencional. Mas nós mesmos não sabemos de tudo o que fazemos, não respondemos por nós mesmos a todo momento.

No livro "Stress and Freedom", Peter Sloterdijk conta uma antiga história relatada pelo historiador Tito Livio: em 509 a.C., um pequeno exército romano-etrusco estava na cidade de Ardea, a 35 km ao sul de Roma. Os oficiais falavam animadamente sobre suas mulheres. Colatino exalta a beleza e a virtude da sua Lucrécia. A fim de observar o comportamento das esposas, na ausência deles mesmos, os maridos, o grupo resolve voltar para Roma.

Lucrécia estava com suas serventes pessoais, tecendo fios. Sexto Tarquínio, filho do tirano Tarquínio, o Soberbo, entra na casa da bela e virtuosa mulher, levando consigo um escravo morto. Ele a obriga a cometer atos sexuais, ameaçando-a de dizer a todos que a flagara com o escravo. Tão logo se retira Sexto, Lucrécia chama pelo pai e o marido. Ela os faz jurar que se vingarão e, em seguida, mata a si mesma, para livrar-se da vergonha.

A notícia corre, e os romanos vão sendo atacados pelo ódio. Na assembleia, esse sentimento psicopolítico os faz unirem-se e legislar para que nunca mais se permita que um homem arrogante seja o chefe do corpo político romano. É o fim da monarquia. Essa antiga cena expõe uma certa ideia de ser livre: manter-se no ethos, ou seja, seguir a cultura onde se nasceu e cresceu e não sofrer ações que divirjam dela.

Em "O cão celestial", Cioran faz ver que Diógenes de Sinope, se quisesse, soltaria um cuspe na cara de um rico, seja ele tirano ou não. A educação, comportamento edulcorado, rebaixa o homem, o escraviza. Deixamos de ser homens à medida em que engolimos o cuspezinho cujo endereço era o chão ou a cara suja de um hipócrita. Em nome da liberdade, no sentido antigo, a res publica foi criada. O homem fica ridículo. No século XVIII, ele conhecerá outra liberdade.

Além das obrigações, do reconhecimento social, Rousseau livrou-se de si mesmo, e o reencontrou, ao flutuar no bucólico Lago Biel (esta é outra narrativa de "Stress and freedom", de Sloterdijk). Nada além de si mesmo, pura existência, sentida pelo genebrino ao deitar-se no pequeno barco e devanear, sem dar objetivo às suas ideias, deixando-as seguir seu fluxo próprio. Liberdade é estar completamente desconectado do mundo e das próprias intenções.

Civilizados, nossa vida transcorre mergulhada no ethos. O que fazer, com um cara que nos enoja? Decepções acumuladas, como lidar com elas? Rousseau sentiu-se atacado e não reconhecido por sua sociedade. Retirou-se para a ilha dos seus devaneios. A subjetividade emerge como o lugar da liberdade, sentir o oceano da própria alma. Uma visão realista diz ser preciso trabalhar para viver. E vive-se buscando garantir o ethos. Essa liberdade não é muto diferente de uma escravidão.

O homem tem necessidades diferentes do que estabelece para ele a polidez e o decoro. Rousseau reconheceu-se num certo si mesmo puro. Para Cioran, na rua o filósofo deve ser como a prostituta, aceitar tudo e recusar tudo. Recusar a si mesmo, estar ao gosto do cliente. O que interessa é fazer negócio. Isto é ter clareza das regras, usá-las ao próprio favor. Depois, no próprio quarto, o filósofo pode cuspir.

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