sábado, 30 de janeiro de 2016

O sabor da fome


Desde o início, um olhar o assedia. Uma palavra só lhe foi lançada, porque quiseram ouvir o som da boca sua. Esperaram, de você, um balbucio. Então supuseram-lhe uma intenção. Vêm esperando erros, para lhe corrigir. Esperam acertos, para aprenderem com você. Provocam você, para interferirem ou serem interferidos. Interferir é a expectativa de, havendo proximidade, causar o ferir. Quiseram mudar algo em você, ou serem por você mudados.

O homem insiste em ver utilidade no homem. Insiste no sentido, no sentido de orientação, da vida. Diógenes foi filósofo pelo seu comportamento. Uma roupa, um teto, uma comida, um contato social deveriam cumprir suas funções. Lançar mão deles mais do que o estritamente necessário faria do filósofo cínico um escravo das suas necessidades.

Você se acostumou a pensar em macarrão à bolonhesa, ao sentir fome. Sentir fome, para você, significa isso. Rapidamente você sai do sentir fome para o macarrão. E A fome, já sentiu? Cioran lembrou que Diógenes procurava um homem indiferente, com sua lanterna, na claridade do dia. Indiferente ao que? A algo além do necessário. Algo além do que o próprio corpo sentia.

Comer, se necessário fosse, seria atendido. Se o corpo empurrasse para levantar um transeunte caído no chão, você faz isso. Está voltado ao sentir, sem falas desnecessárias a alguém. E sem aceitar a presença desnecessária de ninguém ou de alguma coisa.

No mundo contado por Marx, a situação de mercado, os homens e os objetos são equiparados pelo dinheiro. O valor é o da troca, o do comprar e ser comprado, incessantemente. Uma camisa não pode ser um tecido cortado e costurado de certo modo que vista alguém, mas o veículo para as marcas do bom gosto, do estar na moda e da identificação do grupo social, que valem algo.
O homem dança no ambiente só de coisas com valor.

No Paraíso, esticávamos o braço para apanhar algo para comer (não a maçã), caso sentíssemos fome. Como era produzido este algo, o seu nome, não importava. Cioran, no "Exegese da decadência" (em "Breviário da Decomposição"), diz que o homem só escutava a si mesmo, ao estar sob o Verbo intransmissível, criador e conduzidor de tudo. A Queda ocorre desde que se fala, desde que se tenta transmitir algo.

O homem expõe seu coração, e pesca o outro para fazer o mesmo. Eva chamou Adão para morrer, e ela ir junto. A Queda se repete na fala mesmo que do homem para si mesmo. Ao sentir fome, ele não precisava conhecer o que comia. O sentir, se comunicado, perde o sabor. A comida não pode chamar mais a atenção do que a fome.

Certa vez, andei por 8 horas dentro do mato. No meio do caminho, paramos para comer o que tinha, um pão. Sem manteiga, nem nada. Tinha gosto de frango assado. Jamais esqueci do delicioso sabor da minha fome. Mesmo quando tento contar esta experiência, resta algo que só eu, de um certa forma, sei.

O momento em que o homem entrega-se ao sentir, "solidão virginal da alma", é o de viver.

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