quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Estar vivo e fazer o bem


Perguntas eram dirigidas ao oficial nazista Adolf Eichmann, a fim de se obter um desenho das suas ações no extermínio dos judeus. Hannah Arendt¹ percebeu que o réu repetia respostas, tediosamente. Era incapaz de pensar. Eichmann afirmava não ter antipatia pelos judeus, mas às ordens superiores obedecia automaticamente. Nunca tivera êxito em nada, então seria fantástico subir na carreira dentro da SS.

Hoje alguém diz: "se alguém mata, rouba ou estupra também deve ser morto. Imagina se fosse com a sua família?". De tão colado, preso à vivência, ao que sente, não consegue pensar. Repete o cliché da resposta reativa. Está com a atenção fixa no rompimento de uma norma e, obsessivamente, no próprio mal-estar decorrente disso. Diz a todos que também se alarmem, sintam, prendam-se a um fato e a uma avaliação.

Para o realista, a realidade se resume a imoralidades, crimes, pobreza, corrupção, temas recorrentes trazidos por fatos sempre iguais. Toda edição do programa do Aqui e Agora ou do Marcelo Rezende é igual. O realista se fixa nos impactos, e quer fazer carreira como alguém que reage cada vez melhor a eles. Quer conseguir gritar melhor, chamar mais a atenção, fazer a punição funcionar melhor, até atingir a solução final, com o extermínio do alvo.

Obsessivo, repetidor, cultuador da morte. Devota sua vida ao ódio contra quem rouba, mata ou estupra. Se o ódio terminasse, viria para cima dele mesmo, que não conseguiu ser outra coisa na vida. "Medíocre, falhou na única coisa em que foi valorizado." O ódio ao outro e a evitação do ódio a si mesmo criam a visão e a resposta cliché, isenta de pensamento.

Se acontecesse com alguém da minha família, eu sentiria. Talvez eu não pensasse, na hora, e quisesse matar. Mas então eu recebo a visita de alguém. Ou então minha reação, por algum motivo, fica totalmente impedida, e eu ganho tempo para me formar em psicologia e fazer algumas pesquisas. Pensar sobre o homem. Ir para o complexo. Posso lembrar daquele fato impactante e perdoar quem o provocou.

O pensamento, essa suspensão da ação e do juízo, permite que se volte à cena não mais como um gatilho para a repetição de uma reação, perpetuando o presente, mas como algo que já passou, em relação ao qual se sente algo, mas que não é a mesma dor que se sentiu na hora do acontecimento.

O sentimento se transformou. A resposta do mal é sempre a mesma. Fazer o bem requer imaginação, e ocorre de novas formas. Se o Bem platônico está no melhor, o bípede sem penas não pode se permitir ficar parado diante da tarefa de conhecer a si mesmo, para então cuidar de si e participar bem da cidade. O Bem está lá, acima das Formas, mas sua intangibilidade, para o homem, deve mantê-lo inquieto (http://ghiraldelli.pro.br/lutaremos-desigualdades/).

Luiz Eduardo Soares² foi levado, de guia para guia, para um outro mundo, dentro da cidade do Rio de Janeiro. O prefeito da cidade do Primeiro Comando da Capital o recebeu em seu escritório móvel (automóvel). Era época de expansão das UPPS, e ele era um alvo, apesar de para os policiais estarem satisfatórios os ganhos obtidos com a gestão dele no tráfico de drogas.

A cidade do PCC era estreitamente vigiada, mas a invasão era iminente. O prefeito tinha poder, riqueza, o amor de uma linda donzela, mas não tinha escolha: não aguentava mais a pressão, enlouquecia, mas sair dela implicaria em entregar-se e dar-se a morrer aos policiais, ou em fugir, deixando a família e a comunidade vulneráveis aos policiais e às outras facções.

Luiz sente esse aperto. Enquanto escuta, tem tempo para pensar. Ideia maluca: mês que vem o Papa virá ao Rio. Com seus contatos na igreja, poderia se arranjar a sua entrega à justiça, mas perante essa grande autoridade. A manutenção da sua vida tornar-se-ia compromisso de Estado, internacional e institucionalmente vigiado.

O prefeito está vivo, e a vida, podemos dizer, é a mudança das coisas. Não somos rochas. O encurralamento e a situação de ser um realista do cliché pode fazer alguém acreditar que é rocha: duro à toda prova, mas imutável.

A vida não é a realidade. A vida são chances.

Thiago Ricardo, psicanalista.

1. Hannah Arendt - Eichmann em Jerusalém. Editora Companhia das Letras.
2. Luiz Eduardo Soares - Rio de Janeiro: histórias de vida e morte. Editora Companhia das Letras.

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