quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A verdade da criação


Em uma parte de "Freud, uma vida para o nosso tempo", Peter Gay fala sobre os textos em que Freud analisa obras literárias e esculturas, seus autores e seu público. As ações e características de Hamlet guardavam uma lógica inconsciente. Esta lógica relacionava-se, de algum modo, à biografia e às possíveis necessidades inconscientes de Shakespeare. E seu sucesso deveu-se a uma relação que se estabeleceu entre a obra e as necessidades daquela mesma ordem, do seu público.

A análise dos motivos dos autores, contudo, não explicava, para Freud, a criação artística: os temas e lances do enredo podiam ser compreendidos, mas não a realização de Shakespeare, ou da de Michelangelo, ou de Da VInci, em sua magnitude. Se, por um lado, a arte precisa da compreensão psicológica, por outro, o gênio não pode ser explicado. Ou ainda, se uma grande obra não é tão elevada a ponto de não vincular-se aos conflitos eróticos, sensuais, dos seus autores, o desvio da libido para a cultura só se explica neste ponto mesmo, o do desvio, e não se avança na compreensão da capacidade criativa de alguém.

Freud queria antes a verdade que a poesia, conta Gay. E a verdade de uma obra estava nas raízes, no que está oculto em uma edificação, que são justamente as suas origens ideativas-sexuais. A poesia, Freud a apreciava. O homem libertado do peso do seu corpo podia voar. Do Moisés, de Michelangelo. Freud foi psicanalista até certo ponto. A obra continuou exercendo enorme fascínio sobre ele.

Cada um de nós tem uma infra-história a desvendar, o porquê de criarmos ou sermos tocados por algo. E também, obviamente, o porquê de estabelecermos certos comportamentos, e formas de nos relacionar com os outros. A partir disso, o que há é uma possibilidade maior de lidar com esse próprio modo de ser. E isso inclui aceitar as impossibilidades de satisfação sexual, e assim parar de emperrar essa energia em funcionamentos repetitivos. Então a energia sexual estaria disponível para criar. Deste ponto em diante, o homem sai do consultório e vai ser mais livre do que era.

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr conta que seu amigo, o filósofo Richard Rorty, vendo a proximidade de sua própria morte, lamentou não ter lido mais poesia. Leia este texto, do próprio Rorty: http://ghiraldelli.pro.br/…/uploads/The_Fire_of_Life.rtf.pdf. Nele está que a filosofia oferece saberes sobre as coisas. Ensina a lidar com a infinidade da vida e a finidade da morte (quero dizer algo, com esta colocação dos adjetivos). Mas a poesia são como amigos com quem se ri.

Rorty já havia nos levado a pensar que o nosso modo de ser, ou seja, o que fazemos, funciona como quadros de linguagem. E também que Platão, Freud, Newton e outros grandes criadores assim são considerados por nos terem oferecidos novos vocabulários, possibilitando novos modos de conversar. Agora, o filósofo apresentava estes grandes como poetas. Mais do que teóricos, explicadores de alguma coisa, sua criação, ou seja, o conjunto das suas palavras e ideias novas, eram humanas, amigos que te levam a viver mais plenamente. Guardiãs de verdades que a prosa não dá conta de explicar, e que, portanto, são para se viver.

Rorty tributou seu afastamento da poesia a uma questão edipiana, relacionada ao seu pai escritor de poesia. Esta é uma explicação. Mas como a poesia tocava o pequeno Richard? Que gosto foi esse que ele passou a buscar? Que vida era essa que ele queria? Há um bocado disso que não conseguimos transformar em teoria.

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