sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Espaços novos freudianos



Em 1896, Richard Von Krafft-Ebing, especialista em psicopatologia sexual, presidia uma mesa com este tema, em uma associação de psiquiatria e neurologia. A conferência "A etiologia da histeria" fora apresentada pelo Dr. Sigmund Freud. Tendo reunido a investigação de dezoito casos de histeria, Freud podia assegurar que a etiologia dela era um trauma sexual sofrido pelos pacientes quando em idade pré-pubere, sexualmente imaturos. Estes abusos sexuais haviam sido perpetrados por pessoas próximas das crianças, muitas vezes o pai.

A plateia mostra-se cética. A Krafft-Ebing, "parece um conto de fadas científico". De modo geral, os pacientes histéricos de Freud, durante a hipnose ou não, e após certo tempo de acompanhamento, relatavam-lhe cenas de abuso ocorridas em uma idade em que não possuíam condições de entender. Na explicação freudiana da histeria, um certo acontecimento mais recente se articulara ao antigo trauma, inconsciente, fazendo com que a intensidade psíquica deste fosse para o membro ou parte do corpo com participação importante na cena antiga, fazendo com que neste membro ou parte do corpo se formasse um sintoma histérico, físico.

Freud ouvia seus pacientes, e descrevia essa história psíquica da doença, referindo-se a um fato ocorrido com eles. No entanto, Freud começaria a perceber as contradições desta teoria. O casos de histeria eram numerosos. Se para cada um deles tivesse ocorrido um abuso sexual, e considerando que nem todo abuso resultava em histeria, então deveria haver uma infinidade de abusos ocorrendo nas casas e outros lugares fechados. E isso não era provável.

O próprio pai de Freud, Jacob Freud, foi repensado, em suas considerações: quando Freud era criança, o pai tivera o casaco jogado na lama por um antagonista dos judeus, na Viena, em que eles habitavam. Docilmente, Jacob abaixa-se e apanha o próprio casaco. Freud desenvolve um espírito de enfrentamento, em tenra idade, dos seus opositores anti-sionistas e, quando adulto, dos desaprovadores de suas ideias. Cada crítica era recebida com ódio. Freud agarrava-se aos relatos dos seus pacientes, para provar suas teorias. Acabou fazendo uma leitura por demais literal, deles. A recusa do próprio pai o fizera acusar os pais, em geral: ele perceberá isto na auto-análise que empreendeu nos anos 1890. Jacob estava longe de ser um abusador, Freud bem sabia.

A verdade da histeria em fatos ocorridos no passado, tal como Freud descreveu, também naquela conferência, como um desencavamento, limpeza e análise de pedras, começa a não ser satisfatória como explicação geral. Freud começa a aceitar que "não há marcas de realidade no inconsciente", nem há como distinguir entre a verdade de um lado e, de outro, a ficção emocionalmente carregada".

As falas dos pacientes podiam, sim, vez ou outra relatar abusos reais. Mas também podiam ser contos de fada, em relação aos quais deve-se procurar o sentido, não acreditar literalmente. Este passo de Freud foi um caminho para a consideração da imaginação, ou da autonomia da vida psíquica, entendendo que um relato pode corresponder a uma fabulação, e não a um fato. Não se tratava mais de focar a atenção no desvendamento de coisas realmente acontecidas, mas de decifrar enigmas psicológicos.

Trazendo o filósofo americano Richard Rorty, podemos dizer que Freud redescreve o sentido de psiquismo: ele não mais é entendido como um aparelho produtor e armazenador de representações da realidade, às quais deve-se olhar para se conhecer a verdade da realidade e do psiquismo, mas algo que pensa de uma outra forma, livre da lógica consciente. Freud neurologista quisera demonstrar verdades sobre a histeria e sobre abusos, a partir da fala dos pacientes. Freud psicólogo viu nos sonhos, chistes e atos falhos produções totalmente novas, inesperadas, que riam das tentativas de explicá-las por meios de outros fatos.

Era necessário cavar, usando os sinais e sintomas como pistas, mas para encontrar não-se-sabe-o-que, que é o universo inconsciente. O inconsciente se apresentará, anos depois, na psicanálise, como algo que desafia "verdades por demonstração". E que também não se oferece a que se diga uma verdade sobre a realidade dele. O inconsciente será uma coisa, um algo que imporá sua presença, cotidianamente, situado fora da dialética com a consciência e a realidade. Apresentará um outro funcionamento que, se o analista e o paciente conseguirem descrever, poderá ser apresentado para o eu como um texto novo, palavras novas, sobre ele mesmo.

A psicanálise foi a aventura de Freud, tanto em sua análise pessoal como na dos seus pacientes, por espaços novos. Ele foi para onde seus críticos, os médicos de sua época, não mais o alcançariam. Apenas ele e seus pacientes estariam lá, para fazer romances que os levariam a palavras e enredos novos para eles mesmos, e para a psicologia.



Thiago Ricardo, psicanalista


Referências

Peter Gay: Freud, uma vida para o nosso tempo. Companhia das Letras.
Paulo Ghiraldelli Jr.: Richard Rorty: a filosofia do mundo novo, em busca de mundos novos. Vozes.

P.s.: Reproduzo aqui uma parte do texto "Verdade e liberdade: uma réplica a Thomas McCarthy", de Richard Rorty, constante no livro do Paulo Ghiraldelli. Foi um trecho que me inspirou particularmente, para o que escrevi acima:

"(citando Milan Kundera)
"A erudição de Rabelais, grande como ele, tinha um sentido diferente da de Descartes. A sabedoria do romance é diferente da sabedoria da filosofia. O romance não nasceu do espírito teórico, mas do espírito do humor. Uma das maiores falhas da Europa é que ela nunca entendeu a mais européia das artes - o romance; nem seu espírito, nem seus grandes conhecimentos e descobertas, nem a autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de Deus não serve, na natureza, às certezas ideológicas, ela as contradiz. Tal como Penélope, ela desfaz cada noite o tapete que os teólogos, filósofos e professores ensinaram os homens a tecer durante do dia."

Este desfazer é efetuado pela redescrição, oferecendo um vocabulário para falar de algumas pessoas, situações ou eventos específicos que atravessam o vocabulário que temos até então utilizado em nossas deliberações morais e políticas (e psicológicas, insiro eu, Thiago). O romance não oferece um argumento dentro do mesmo espaço dialético que previamente ocupamos, mas oferece antes um vislumbre de outros espaços. O desejo de redescrever, cultivado pela leitura dos romances, é diferente do desejo de demonstrar, cultivado pelas leituras metafísicas." (Ghiraldelli, pags. 107 e 108)

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