quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Aquele que mata e aquele que ama



Alimentar-se do fruto proibido foi, para Adão, não uma maldade. Ele não conhecia o bem e o mal. Na análise do Paulo Ghiraldelli Jr (http://ghiraldelli.pro.br/a-biblia/), o feito de Adão foi uma desobediência a Deus. No paraíso, o homem e os animais alimentavam-se do fruto das árvores. Não havia derramamento de sangue. Mais adiante, no Êxodo, veremos que Deus põe-se como o libertador do povo, que fora escolhido por ele, da escravidão no Egito. A Moisés, no deserto, ele transmite as leis que deverão reger a vida da nova sociedade, de modo a que novas situações de escravidão não fossem criadas. O homem pode ser conhecedor do bem e do mal, mas deve obedecer as leis de Deus, para que não volte a criar um novo faraó, um novo Egito.

Na industria de produção de carne (branca ou vermelha, não importa), os cruzamentos de indivíduos, as características de embriões, os processos de nascimento e criação, os sistemas de transporte e os métodos de abate são pensados de modo a que a carne seja produzida de foma mais rápida, barata e rentável. Cada indivíduo que está dentro desta cadeia já nasce sendo pensado como o recheio de uma embalagem, vendido esquartejado e aos bifes. Cada vida é pensada como algo a ser conduzido por esse processo de produção, até a embalagem para a venda. Então não é propriamente uma vida, mas um objeto no qual o destino se rebate em cada etapa do seu desenvolvimento, significando-o.

Um boi foge dessa cadeia. Um funcionário o mata com tiros na cabeça (http://g1.globo.com/sao-paulo/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2015/11/boi-escapa-de-frigorifico-e-acaba-sacrificado-por-policiais-em-andradina.html), pois assim a sua retirada da rua será mais fácil. O funcionário obedece à cadeia de produção da carne. O mal não é fruto de uma entidade, mas é o que se vive num mundo infernal criado pelo homem. Infernal porque é o da escravização dos seres: escravizamos animais, escravizamos homens. Na encíclica Laudato Si, Papa Francisco conta que o uso predatório dos recursos naturais, pelo homem, degrada não só a natureza, como o próprio homem. A natureza é a mãe, a criadora dele, e ele precisa agir como está posto no Gênesis: ser não só um utilizador, mas um guardão do solo e da vida que está sobre ele. Deus funciona, aqui, como uma direção a ser olhada pelo homem para que ele tenha consciência, ou seja, para que ele lance uma ideia e tenha uma resposta, e continue conversando sobre o que fazer, aproximando, então, a obediência do fazer o bem.

Hannah Arendt mostrou que o mal é uma realização de funcionários eficientes, obedientes a seus superiores, cumpridores de suas tarefas. O general nazista Eichmann, em seu julgamento, mostrou-se não brilhante a ponto de que pudesse afastar-se das ordens de seus superiores, e de tudo o que ocorria a seu redor, e talvez fazer uma crítica, ver o erro do campos de concentração. O mal foi feito sem a consciência do mal, mas por simples, inconsciente, obediência.

Os funcionários da carne (incluindo os consumidores) desconhecem o boi, o que ele faz quando está num pasto. Nunca enfrentaram a agilidade de uma galinha, ao tentar apanhá-la. Talvez tenham visto o filme Babe e considerado criar um porquinho no lugar de um cachorrinho. O funcionário da carne é um personagem que desconhece isso tudo. Esse personagem pode existir no mesmo indivíduo em que habita o personagem que se intriga com os animais vivos. O primeiro personagem não entra em conflito cm o segundo, pois o segundo não impede a continuidade do primeiro. É que a carne nunca foi viva, para quem mata e come os animais. Este personagem retira da carne toda as qualidades do vivo que, nas considerações de quem gosta dos bichos, recaem sobre aqueles a quem achamos que podem lhe divertir, emocionar ou amar. O ser que está na cadeia da carne, por nunca ter estado vivo, é totalmente diferente do bicho que é considerado fofinho.

Há uma parte nossa que deixamos correr sem consciência, obediente e fazedora do mal. E há uma parte nossa que, no trabalho da consciência, olha para qualquer ser, inclusive os animais, e vê algo importante neles. Algo que fala à própria pessoa que vê.

O homem que atirou no boi, no momento em que fazia isto, não viu um boi. Não viu o boi que veria numa visita à fazenda. Viu uma embalagem de bife que fugiu. A nossa parte sem consciência assim o é por não ver o que está à sua frente - um boi andando -, e por não ver a si mesmo - alguém que gosta dos bois que vê pastando, quando visita uma fazenda. Ele está apartado tanto do empírico quanto a própria experiência. Naquele momento, ele obedece a um processo, e não tem qualquer consciência.

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