quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Carga morta


Uma carreta de frigorifico tombou, em São Paulo. (http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/08/carreta-que-transportava-porcos-tomba-no-trecho-oeste-do-rodoanel.html)

Não, não darei esta notícia, mas esta: mais de cem porcos foram mortos ou gravemente feridos com a queda da carreta que os continha. A tentativa de por a carreta em pé, com eles ainda dentro, causou uma segunda queda do veículo, amassando os porcos.

Não deveríamos noticiar a queda da carreta, e a obstrução do trânsito. Carretas podem cair, o trânsito sempre para. Mas, mesmo um âncora de tv que disse que os porcos deveriam ter sido retirados antes que se tentasse erguer a carreta, começa noticiando a queda da carreta e a obstrução do trânsito, e deixa as vidas perdidas em segundo plano.

O que é vivo não pode ser tratado como destinado à morte. Se isto ocorre, é como se nunca tivesse vivido. Quando foram postos na carreta, os porcos já eram considerados carga morta. Viva era a carreta. Se ela tomba, ninguém pensa que ela possa estar levando algo diferente dela, e que esteja vivo. Caso se considere que a carreta em deslocamento levava porcos vivos, pelo que a notícia de hoje mostra, todos os porcos morreram imediatamente à queda da carreta, e não era preciso verificá-los e resgatá-los.

Quando os porcos nasceram, nasceram como coisa a ser manuseada por máquinas (incluindo homens-máquina). A vida do porco é desde o início a vida das máquinas que o fazem nascer, crescer, ser transportado, morrer, virar presunto, ser comprado, ser comido e ser defecado.

O ambulante que foi atropelado por um trem, no Rio de Janeiro e, caído sobre os trilhos, teve o corpo retalhado pelo próximo trem, que não podia parar "para não atrasar e causar tumulto" (segundo justificou-se a operadora Supervia), mostra que os passageiros são vivos enquanto seguem o fluxo previsto. A queda de um deles é a queda de algo que não já não vive mais.

O trem do Rio é considerado transporte de "gente pobre". Gente pobre é tratada como porco: só existe se estiver em uma engrenagem, que é a vida que existe.

Mas isso também ocorre com gente que não é pobre. Um médico acredita que existe para curar doenças, e salvar vidas. No seu consultório particular, em um bairro de classe média, ele atende muitas pessoas. Tem uns pacientes que insistem em não tomar o remédio que precisam tomar, para determinada "função vital" dele continuar. O médico insiste um pouco, mas persistindo a recusa, ele desmarca aqueles pacientes, ou diz que não quer mais atendê-los.

O médico poderia tentar uma outra abordagem com estes pacientes, mas passou a vê-los como gente que agride sua função de "máquina de salvar vidas". São deixados morrer.

O medico tem nome, tem características individuais. Atende pacientes que têm características individuais. Contudo, tem com estes um funcionamento de máquina. Não sabe quem é o dono do órgão, e porque esse aí quer tratar do órgão, enquanto aquele ali não quer tratar. Não sabe nada do vivo, e imagina saber da vida.

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