quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A oposição "eu ou o outro"

João pergunta a José se ele gosta de Carlos, e ouve como resposta: "Eu não gosto de Carlos".
Em outra situação, Manoel, sem ser peguntado, diz para Paulo: "Eu não gosto de Carlos."

Na segunda situação, a oração expressa a oposição de Manoel em relação a Carlos. Na primeira situação, a frase dita por João também é negativa, em relação a gostar de Carlos. Esta provavelmente expressa o que sente João. No entanto, se é isso que está ocorrendo, a frase dita por João não é uma resposta lógica à José. José perguntou se João gostava de Carlos, e a negativa de João pode ter sido ao gostar, não implicando um desgostar. O contrário lógico de gostar não é desgostar, mas a ausência de gostar.

Quando se fala em desgostar, costumamos nos sair melhor com a lógica: - "Você desgosta de Carlos?" - "Desgosto, não". Não entendemos, com isso, que ele goste de Carlos. Está neutro.


Se deixarmos Carlos em paz, e falarmos de brócolis, o "não gosto de brócolis" também é tomado mais como um desgosto de brócolis do que um "não faz o meu gosto".

Não temos o costume de dizer que algo não faz o nosso gosto, que nos é indiferente. É como se, a princípio, tudo fosse gostado por nós, e então pinçamos um coisa ou outra pra dizer que não gostamos.

Nossas falas estão carregadas de afetos, e afetos não são gramaticalmente lógicos. Ou melhor, a gramática não estranharia isto que estou estranhando, pois incorporou a lógica da nossa fala corriqueira.

Os primeiros momentos de vida pós-nascimento são, para o bebê, imersão em um ambiente em nada separado dele. Ou melhor, não é possível considerar que haja um "ele". O bebê é um elemento num ambiente de outros elementos. Ele recebe olhares das pessoas muito próximas, e reage. Este elemento também envia os seus olhares. Tudo o que está à volta é para ser olhado e pegado. Aos poucos, porém, ele vai começar a recusar uma coisa ou outra, devido ao desprazer que elas proporcionam (a coisa pode ser apenas desinteressante: será desprazerosa se é repetida, não satisfazendo a necessidade de curiosidade).

Um pouco depois disso, o bebê começará a nomear a si mesmo, como um nome, ainda não como um eu. Ele é algo que não é a mesma coisa que o resto. Depois ele se nomeia como um eu, assumindo a condição de ser ele próprio a coisa que não é o resto. Antes disso, na fase de começar as recusas, ele já tinha gosto e "não faz meu gosto". Agora, como um eu, ele se tornou o ponto elaborador dessas considerações. A criança procede à negação do que o cerca, para ser um eu. A diferenciação em relação ao restante não é neutra, não é um "não faz meu gosto", mas tem o peso do "não", do ódio.

O que é recusado pelo bebê é o entorno sem forma. Daí emerge um eu. Quando João diz "Não gosto de Carlos", a recusa é específica a Carlos. Apesar disso, levamos para esse trato específico a "recusa por medo de ser soterrado". Por isso não dizemos simplesmente que "Carlos não é do meu gosto", mas carregamos nossa posição de negatividade. Esperamos de João mais do que indiferença: queremos saber a sensação ruim que Carlos provocou nele, e a opinião própria de João, dizendo quem ele próprio é.

Quando alguém recusa algo do mundo, não entendemos como isso pode ser neutro, um "não posicionar-se". Achamos que a negação de algo sempre tem que conter ansiedade, e ser a afirmação de algo diferente, um outro mundo, sem concordância possível com o primeiro algo, o primeiro mundo.

O que impede que nos vejamos em associação íntima com as coisas, não encerrados em nós mesmos, e como podendo cotejar diversos pontos de vista, ao invés de nos fixarmos em um, em contraposição a outro, é essa ansiedade por nos diferenciarmos do nosso ambiente.

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