sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Identificação e empatia


No poema "Os olhos dos pobres", um casal está entre garrafas de vinho, em um elegante café de Paris. Homem e mulher olham a moderna avenida, que acabara de ser construída, e compartilham a admiração. Vinha uma família esfarrapada. Ela dá uma parada, a fim de também admirar a avenida. O homem que estava no café se envergonha por estar celebrando, enquanto aquelas pessoas estão em farrapos. Seu pesar pela dor (que supõe que seja) do outro é interrompido pelos gritos da sua mulher: ela exige que o garçom retire aqueles pobres da sua vista. O homem vê que a mulher não compartilha do sentimento dele pelos pobres. Mais do que isso: ela não percebe que ele o está sentindo. A identificação, entre eles, dá-se apenas em torno do esplendor da modernidade.

Parece haver sentimentos e impressões incomunicáveis entre as pessoas, em uma metrópole. Mesmo entre casais. Walter Benjamin se apoiará neste e em outros poemas, do "pintor da vida moderna", para dizer que há um declínio em nossa experiência dos feitos antigos e grandiosos, definidores de um povo ou uma coletividade e doadores de um campo comum de sentido. Concentramo-nos nas experiências que tomam os acontecimentos sob a ótica da ação e da afetação subjetivas.

Neste sentido, o que eu faço e o que eu vivencio dos acontecimentos derivam do que eu penso e sinto intimamente. Este empobrecimento da "experiência plena", e a hipostasia da "experiência íntima" levam, para Benjamin, à perda da nossa capacidade de comunicarmos vivências. Ficamos encapsulados na subjetividade.

O sociólogo Georg Simmel escreverá, pouco mais de meio século depois de Benjamin, que este ambiente lança um excesso de estímulos para o homem, mais do que ele é capaz de assimilar. Para se proteger da sobrecarga, o homem cria uma barreira de proteção, principalmente acústica, entre ele a cidade. Com atitude blasé, ele passa a andar nas ruas como se nada lhe dissesse respeito.

Computando estas coisas, desconhecemos a existência de uma alma que não seja a que se encerra numa subjetividade. Foucault diz que a confissão cristã, o exame psiquiátrico e o interrogatório jurídico serão buscas por desvendar as "verdades" sobre quem se é. Isto reforça a imagem de nós mesmos como almas internalizadas e não transparentes aos olhos, próprios ou dos outros.

Além do confessionário, da sala de interrogatório e do consultório do psicanalista, o único lugar em que a alma se revelaria é na relação de amor romântico. Sennet afirma que cada indivíduo empreende este trabalho de se contar e se explicar para o outro, e de esperar a mesma coisa dele, tentando fazer conhecer quem "de fato se é". Trabalho interminável e praticamente fadado ao fracasso, não porque as pessoas vêm de famílias, classes, cidades, etnias, sexos, e uma porção de outros elementos diferentes, mas porque é a escavação atrás de algo que não se encontra com certeza.

Enorme prazer sente quem acha que conseguiu fazer alguém entender as próprias razões, e compreender os próprios motivos emocionais. Este outro vira a "metade da laranja" ou o "best friend forever". Numa inspiração sloterdijkiana, com este outro eu me sinto em casa, no meu próprio mundo confortável e protegido.

Na internet chovem indicações de que signo seria o parceiro ideal. Ninguém vai te indicar, publicamente, alguém de uma profissão, idade, etnia, tipo físico, etc, específicos, por que isto poderia ser visto como preconceituoso. Contra signos ou "energia espiritual" não há preconceito. Se algo maior do que eu e você disse que combinamos ou descombinamos, não tenho problema em acatar. Agora, decidir buscar ou evitar relacionar-se com alguém, usando critérios "antropológicos" ou "sociológicos", não escaparia de ser visto como preconceito. Em conversas com amigos, no entanto, diz-se que foram estes os motivos porque você dispensou uma pessoa, e ficou com outra.

Os amigos te fazem se sentir seguro de que você não será acusado de preconceituoso. Eles entenderão como de valor secundário o embasamento antropológico-sociológico dos seus motivos emocionais, pois conhecem sua boa alma.

Olhando para as relações na cidade, Calligaris (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2015/08/1670800-sentir-ou-ficar-frio.shtml#_=_) conta que a queda do Muro de Berlin marcou um momento em que não havia mais barreira para a empatia entre as pessoas: não há mais motivo para a incomunicabilidade dos sentimentos e das ideias, entre as pessoas. A mulher do poema poderia finalmente sentir a dor do pobre. Nos anos 90, lembra o psicanalista, a preocupação recaía sobre o Asperger, incapaz de empatia.

Hoje nos expressamos publicamente, nas redes sociais. Queremos nos identificar com uma ampla gama de diferenças, e que elas se identifiquem conosco. Que todos saibam o que penso e o que sinto! Mas se teme quando há um psicopata ou um google que anota o que vê das suas escolhas, aprende, e lhe oferece exatamente o que você queria. Tem gente que você não conhece conhecendo você, tendo empatia pelo que você sente, pensa e gosta.

Também ocorre o seguinte: grupos se formam por pessoas que se consideram identificadas, umas com as outras, e não identificadas com as pessoas de fora do grupo. Tal coisa vem ocorrendo muito com aqueles que se identificam com determinada minoria. A ideia é de que quem se identifica com uma minoria, por se ver semelhante a uma característica da imagem social dela, terá uma comunicação mais fácil com outro também identificado por ela.

"Só uma mulher vai entender o que é sofrer um aborto". Parece haver aí um apoio na identificação em torno de determinada característica biológica, antropológica ou sociológica, para se experienciar uma identificação por almas, essências. Frases como esta, sobre a mulher, são essencialistas, recomendam que se busque e se feche num grupo, ou manda outros fecharem-se.

O mundo aberto é vivido, aqui, como dificultador do dar e receber identificações, e do dar e receber empatia, que nelas se apoiam. Faz-se, então, o exclusivismo ciumento do grupo de identificação. Ele parece assegurar um mundo particular, e uma experiência da harmonia entre quem se é e um ideal que se tem: me vejo como mulher, só mulheres sabem o que passam as mulheres, e me acho semelhante a Pagu; me vejo como negro, só o negro entende o negro, e sou como Zumbi, pelo que ele fez e passou; etc.

A identificação quer saborear um mundo particular caloroso. Os ciúmes são uma tentativa quase desesperada de fazê-lo durar.

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