segunda-feira, 15 de junho de 2015

Amar é estar ajeitadinho


No texto “A sereia desmistificada”, Bento Prado Jr., fala que há três formas de discurso possíveis sobre a literatura: o comentário, que pretende facilitar o acesso ao texto, então explicita o que ele diz; a explicação, que lê o texto a partir de outro texto, referente a uma estrutura mais geral ou a uma cadeia de acontecimentos, dos quais o primeiro texto foi derivado; e a interpretação, que também fala palavras que não as do texto, mas nem por isso se situa externamente a ele, como ocorre na explicação, pois pretende descobrir-lhe novos sentidos internos, mudar a perspectiva de sua leitura.

Interpretarei, aqui, a “História de dois amores”, de Carlos Drummond de Andrade, e o farei para dizer que a idéia de “porto-seguro” é de tudo ou nada, ou seja, não se refere a um lugar onde o eu vai descansar ou se proteger do mundo, mas é o chão que se cria quando um elemento encontra outro, como um sapo a uma mosca, ou um bebê a um seio. Eles se ajeitam um ao outro, passam a viver um clima de acolhimento, proteção e conforto, e, dessa intimidade, emergem como eu, sapo, ou seja, elementos definidos. Desse chão em comum nenhum deles nunca sai, a não ser que o porto-seguro anterior se perca e um novo seja constituído, e isto é um processo de quase queda no abismo do nada. Seres desprovidos de um lugar onde possam se sentir bem ajeitados vivem no desconforto, e ficam raivosos. Seres que participam da condição de estarem bem encaixados, participando de trocas tão equivalentes que se tornam imperceptíveis, são seres que vivem no amor, e por isso, sentem-se bem.

A pulga Pul aparece na história como sozinha, realmente sozinha, à deriva, como se alguém pudesse existir assim. Ela faria morada na primeira coisa que pintasse em sua frente. Passou por ela a orelha de Osbó, um elefante. Lá se meteu Pul. A pulga se achava o Rei das Pulgas. O seu elefante obviamente deveria ser era o Rei dos Elefantes, e era servidor dela, dando-lhe transporte e visão integral de tudo o que havia. Mas o elefante era indiferente à sua voz, às suas mordidas, aos seus chamados. Ele era colossal, ela minúscula. Ela estava acolhida na orelha de Osbó, mas não tão bem ajeitadinha. Aquilo era muito grande e barulhento. Mas estar ajeitada importava menos do que ter o maior poder de todos.

Um dia, ao encontrar o restante da manada, Osbó foi surpreendido pela oposição, de um grupo de elefantes, a que ele continuasse sendo o líder deles. Ao ouvir isso, Pul inchou de raiva, virou um pulgão, e pulou de olho em olho dos elefantes, picando e pondo-os cegos. Os opositores desistiram do seu intento, e deixaram o lugar. Osbó, enfim, reparara em Pul, e já pôde ver a sua enorme força. Passaram a conversar, viraram amigos. Pul pediu a Osbó que utilizasse a sua influência de Rei dos Elefantes para convencer as pulgas de que ela, Pul, era o Rei das Pulgas. Osbó não sabia se aprovava a idéia. Para convencê-lo a ajudá-la, Pul iniciou um zumbido fortíssimo, bem no interior do ouvido do seu amigo. O rock era de dia, era de noite, não parava. Osbó perdera o sono e o apetite.

O elefante foi encontrar um amigo, com quem conversou de um jeito que a pulga não pudesse escutar. Um pulga com raiva, ninguém segura. Osbó teve uma idéia: para esquecer a ira de sua amiga, só se ele mesmo entrasse no estado oposto, o estado do amor. O elefante passara a vida muito tímido. Agora olhava as elefantas, à procura da que pudesse ser o par dele. Encontrou a mais bela elefanta da floresta, e a ela se declarou. Ela também gostava dele, e então formaram um felicíssimo e grudadíssimo casal.

Osbó esqueceu o zumbido antes insuportável de Pul. Pul ficou triste, com a distância do amigo. Saiu de sua orelha e foi sentar-se à beira do rio. Osbó percebeu e foi falar com ele. Disse que considerava o amigo como zangado, sim, mas uma pessoa muito querida. Pul merecia amar! E seguiu o conselho do elefante, logo topando com uma linda pulga, do tamanho certo para ser seu par. E passaram a vida pulando por aí, sempre perto do casal de elefantes.
Pul não tinha um lugar dele. Encontrou um orelhão que o abraçava, mas que não podia ser seu complemento, sua continuidade. Era uma grande cabana, que o mantinha lá no alto das coisas, dando-lhe a impressão de reinar absoluta, e solitária. Mesmo tendo a amizade de Osbó, Pul só pensava na posição que queria ocupar, perante as outras pulgas. Imagine se você se sentiria bem, no sentido de bem acomodado, no chão de uma floresta, tendo como abrigo apenas as copas das árvores altíssimas. Você não se sentiria bem, e provavelmente viveria como fera, à flor da pele. O leão é o Rei da Selva, mas vive com "sangue nos olhos".

Osbó não se considerava o rei da sua espécie. Ele queria vencer a timidez e conseguir um amor. A gritaria desesperadora da pulga apressou isso: é grande o mal-estar provocado por um irado insatisfeito, e amar se torna urgente. O elefante formou a sua relação íntima, grudada e doce, e, para Pul, só poderia aconselhar que tratasse de fazer o mesmo. Pul assim o fez, e também passou a viver o doce estado. Parou de pensar em ser o Rei das Pulgas, e passou a dedicar-se a ser o rei e o escravo da sua pulguinha. Um amor precisa ser algo próximo do nosso tamanho, assim como um lar precisa ter um teto possível de ser tocado pelos dedos, mesmo que usemos escada e só toquemos com a pontinha. Assim, nos sentimos harmoniosos, tão importantes quanto a quem damos importância, sem dar ou receber demais, sem nos sentir desfavorecidos ou dominando alguém. Um lar e um amor são coisas que precisam e fazem com que fiquemos ajeitadinhos.

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