quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Considerações sobre o "tudo bem"


A filosofia de Nietzsche permite contarmos que antes de sermos homens éramos alguma coisa que vivia a vida plenamente, em seus altos e baixos. Recebíamos os acontecimentos de peito aberto e com atitude de vencedor. A tipologia forte-fraco, elaborada pelo filósofo, vai bem aqui: o fraco, regateador, sempre evitou entrar nos lances decisivos do jogo que é a vida. O forte lhe dirigia ordens ou ações, e o fraco, sorrateiro, evitava contrapor outras ordens ou ações. A resposta dada pelo fraco era um tímido “tudo bem”, deixando o que veio do forte entrar por um ouvido e sair pelo outro. Assim, isentava-se de ter que considerar o que o outro lhe lançou e de preparar uma contra-ação à altura.

O fraco também sugeria ao forte que pensasse no que fazia, dizendo “você deve buscar antes de tudo ser bonzinho, ter consideração com os outros. E deve se lembrar que cada um precisa ser responsável pelos próprios atos”. Tanto insistiu o fraco nessa conversa que minou a força do forte, fazendo-o ter dúvidas e enfraquecer, ou seja, tornando-o semelhante a ele mesmo, o fraco. E começando a responder um “tudo bem”, incólume, a tudo.

Kant e o Iluminismo nos deram o homem como sendo maior no uso que faz da própria razão. Diante de cada situação, ele não deveria seguir ninguém exceto a razão obtida como resultado da deliberação dele mesmo acerca do que fazer. O sujeito kantiano tem uma boa razão para justificar seus atos. Ele só age quando possui essa razão. E pode sugerir aos outros que também busquem suas razões. Um “tudo bem” que lhe dissessem soaria para ele como preguiça de usar a capacidade de elaborar juízos, e ele teria certeza de que o dono da boca que o proferiu faria besteira. A imagem que fazemos de nós mesmos deve muito a Kant. Vemo-nos como “conscientes dos nossos pensamentos e responsáveis pelos nossos atos”. O indivíduo que responde pelo que pensa e faz é o elemento a quem são atribuídos os direitos que sustentam os Estados modernos.

Após séculos de governo baseado em conhecimento acessível a poucos, em uma inspiração platônica, que dizia ser o saber verdadeiro possível de ser descoberto apenas para os filósofos, hoje quem governa o indivíduo age (ou deveria agir) em nome dele e fazendo cumprir os seus direitos. O platonismo, no entanto, ainda faz parte do nosso dia a dia. Frequentemente nos engajamos em conversas nos colocando como possuidores de alguma relação com autoridades não-humanas (Rorty fala delas em “O declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária”), que nos garantiria saber sobre a “natureza” ou o “conceito” das coisas. “O que é um pai?” é trazido para uma discussão sobre paternidade. “O que é cultura?” é perguntado quando se precisa decidir que projeto será contemplado com ajuda financeira. “O que é a vida?”, busca-se definir quando se pensa em legalizar ou manter o aborto proibido.

A religião, a literatura, a filosofia e a ciência deram respostas para essas questões. Aqui e ali, é provável que continuem respondendo. Eu e você, também. E discordaremos muito, embora continuemos achando que é melhor dar definições que perdurem, como se o verdadeiro conhecimento nos chegasse do céu, de presente, e fosse eterno. Ao invés disso, poderíamos responder, para nosso debatedor, o que é do nosso interesse, “o que eu gostaria que acontecesse”. Dizer e ouvir isso são um jeito de apararmos arestas e contemplarmos interesses aqui e ali, e criarmos uma concordância, ainda que momentânea.

Aquele que permanece apegado à verdade-dom, diante de um conversador que vá pelo “vantajoso”, pelo “interesse” e pela “novidade”, esgota suas definições e sai com um “tudo bem”. Ou fica agressivo e força o conversador a dizer ele mesmo o “tudo bem”, a contragosto. Este fica pensando no que poderia ter dito na situação em que não houve acordo.

O conversador pode ser a filha de um pai que nunca a deixaria fazer uma prova escolar sem ter estudado nos dias anteriores, “porque menos de 9 é inaceitável”. Ela daria aquela mesma resposta ao pai, pois não adiantaria explicar o que ela sabe a respeito de cuidar dos próprios estudos. Ele não ouviria.

E o conversador pode ser alguém que, por melhores que seus próprios argumentos lhe parecessem, aceita com o "tudo bem" o que o outro, mais familiarizado, ou seja, com mais sucessos, na lida com determinada situação, lhe diz para fazer. "Eu poderia falar mil coisas, tentar convencê-la, mas será melhor eu fazer do jeito dela".

Thiago Ricardo, psicanalista

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