segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Perereca solta na escola

Na escola, crianças de cinco, seis anos, faziam "experiências científicas". Com funis e tubos, a professora montou um estetoscópio. Precisou repetir o nome, para entenderem. Era para eles ouvirem o coração, como fazem os médicos com seus pacientes. Ouvir o coração eles já ouvem: após um pouco de corrida, o coração fica quase pulando para fora, e elas nem precisam por a mão sobre o peito, para sentir. O Emílio, de Rousseau, tinha de montar o próprio telescópio, se quisesse ver estrelas. A partir da vivência das crianças de que há algo batendo no próprio peito, a escola fala sobre a existência do coração, o seu funcionamento e sinais. Nesse conhecimento científico a que elas vão sendo introduzidas, há dados novos, elementos não observados pelas crianças, mas observados por alguem. Elas não estavam tendo êxito, com o aparelho de escutar coração. Não estava dando para ouvir nada. O garoto pediu-me para escutar o coração dele, pondo meu ouvido diretamente no seu peito. Está forte?, perguntou. Está rápido, respondi. O coração batendo não tão forte, apesar de rápido, preocupava o garoto. Numa aula subsequente, ouvimos que o interior dos ossos tem uma substancia esponjosa. Ainda sobre o "dentro" do corpo, a professora conta que chamam-se testículos o que elas, crianças, costumam chamar de ovinhos. E o que tem dentro deles, perguntaram. Uns bichinhos que nadam. A professora não diria o nome, sem antes verificar se eles lembravam. E dentro dos bichinhos tem o quê, perguntaram. Não sei te responder agora, mas eu e você podemos pesquisar isso, disse a professora. Mas não podem dar chute ali, heim?, completou. Dentro deles há coisas cuja presença ou funcionamento escapa à percepção deles. Coisas, portanto, que ocorrem dentro deles, mas à sua revelia. E estas coisas têm outras dentro, que a própria pessoa pode conhecer. E há coisas dentro destas, que o livro conhece. E outras dentro desta, que talvez ninguém conheça, e que estão muito longe dos meus sentidos. Mas o dentro do dentro do dentro não pode cessar, como a boneca Babuska, que contém uma cópia exata dela mesma, e que esta cópia também guarda uma cópia, e assim sucessivamente e cada vez diminuindo a escala, até se chegar na última, que é oca. A escola parte das experiências da criança, e a apresenta ao saber científico. A filosofia também começa com as experiências, mas faz perguntas que o livro não responde: "o que há dentro do dentro do dentro?", "quem controla o que eu não controlo em mim, e quem o controla?", etc. São exercícios de perguntar e pensar hipóteses. Os "experimentos" científicos desembocam no que a professora já conhece. Para as crianças é a primeira vez, e se surpreendem. Mas logo será experimento, repetição, não experiência, num sentido maior. Mais tarde, nesse dia, uma professora que sempre leva plantas e bichos para eles verem mostrou um pote com algumas pererecas. Explicou que tipo de bicho eram, o quao são frágeis e pequenas, e nada perigosas. Tirou uma delas do pote. As mãozinhas abriram-se para receber a perereca. Sobre uma mão, a perereca ficava parada. Depois, por alguma razão, sempre pulava. A professora a recolhia e passava para a outra criança. Esse pequeno ser tem uma forma bem diferente da humana. Tem a cor escura, porém brilhante. É linda, uma jóia, a meu ver. Na minha mão tive medo de, sem querer, machucá-la. Uma das crianças ficou com medo da perereca, e não conseguiu oferecer a mão. O fascínio e o medo, essas sensações diante de um determinado ser, são inexplicáveis ou inaplacáveis quando se é informado daquela espécie ou na nossa própria psicologia da percepção. É o momento da experiência, que vai ganhando sentidos aos poucos, nas brincadeiras das crianças. Nos próximos dias a pererequinha ficará à solta, por lá.

Nenhum comentário:

Postar um comentário