terça-feira, 23 de setembro de 2014

Formas de não se ter experiências

Há dez anos, João Gordo brigou com Dado Dolabella, no programa de entrevista que o primeiro tinha, na tv. Dado disse que João tinha fama de encrenqueiro e, por isso, havia levado um porrete e uma machadinha, para o encontro. João respondeu à provocação pegando ele mesmo uma das armas e gritando para que Dado saísse dali. Antes disso, Dado havia chamado João de "traidor do movimento punk". "Encrenqueiro", se dizia a respeito do João, na tv. "Traidor", era dito apenas por um público restrito, o "público de rock". Ter sido chamado de "traidor do movimento punk" por alguém não identificado ao tal movimento causou um riso de nervoso em João. Entretanto, Dado possuía aquelas informações, e as usou, com aparente naturalidade. Não lhe foi preciso ser punk para se queixar com João, sobre o punk. Sloterdijk, em O Palácio de Cristal, conta como o mundo passou a ser representado pelo globo terrestre. O velho continente tinha no firmamento, a abóbada celeste, e na terra, os eixos de sustentação do mundo. O mar demarcava o seu final. Com as navegações, o horizonte do conhecido foi se ampliando. O oceano não necessariamente era devorador, e outras culturas e costumes puderam ser conhecidos. A demora da viagem, o tempo necessário para se percorrer o espaço, davam uma experiência ampla e de longa duração (erfahrung). Por meio de cartas, os navegadores informavam seus iguais sobre aquela aventura e os diferentes seres assemelhados com humanos, que haviam encontrado. Aqueles relatos informavam sobre o que se encontrava distante. Não era preciso estar lá para conhecê-los. O texto e a imagem foram substituindo o saber proveniente da participação, da experiência direta. O Iluminismo pôs o homem como aquele que tem capacidade de conhecer as coisas. A imprensa fez com que o conhecimento do distante fosse democratizado. Para Platão, a experiência direta das coisas era enganosa, pois o real estava num mundo atingível apenas pelo intelecto. Para os navegadores e reis, a experiência direta do distante também era para poucos, embora a viagem a ser feita não fosse mais de alma, e, sim, de navio. Com a imprensa, contudo, conhecer algo dava-se não mais pelo olhar imediato, mas pelo olhar mediado por uma boa representação. A banca de jornal falava do real, para uma cultura ainda suficientemente platônica para desconfiar do que soubesse apenas observando. O observador imparcial conhecia melhor o mundo, e até a própria interioridade do público do que quem tivesse experiência direta deles. E que experiência? Valia mais ver um Globo Repórter sobre a comida grega ou a favela carioca do que participar deles. Bons fotógrafos, jornalistas conhecedores de tudo, repórteres de comunicação ágil e pesquisadores de campo são como eu e você, não os invejamos (em alguns casos, não queremos ser eles), e apenas nos atualizam do que já sabemos. A criança chega à escola sabedora de tudo, e impaciente para o tempo longo da experiência de formação, do aprender a ler as informações que não param de chegar. O professor é visto como elitista, se é bom, ou como autoritário e atrasado. O mundo são as circulações eletrônicas, de dados e comerciais. Essas redes cortam a Terra, fincam pontos de redistribuição e fazem-na inteira para o nosso conhecimento. O homem fez uma estufa: nela ocorrem trocas, produção de histórias de vida, e sensação de conforto, com o mercado ou os direitos e a seguridade social. As distâncias geográficas são suprimidas, pois se vai do ponto A ao B com cliques no celular em um ponto Z. As distâncias de tempo e de idade também são irrelevantes. Todos os bens, e as experiências comunicáveis em identidades, também tornadas bens culturais, estão para consumo. Nada está disperso, é marginal ou exótico demais. Esses nomes viram adjetivos para o que eu tenho acesso. Há trinta anos, João Gordo canta no Ratos de Porão. Em uma entrevista para o Jô Soares, em 1991, João diz fazer música de protesto, a mais agressiva do mundo. Os punks colocam-se como portadores e porta-vozes de uma experiência de condições ruins de trabalho e de privações, as quais eles dizem ser do "povo". Suas roupas, bebidas, drogas e gritos são a expressão do que não concordam. Os que "não se revoltam" também serão descritos pelos intelectuais: os praticantes da cultura x, os portadores da história de sofrimento y, querem ser olhados com mais demora, diz a academia. Num ambiente de trocas rápidas entre coisas tornadas equivalentes pelo dinheiro, identidades são sub participações, pois a fixação leva a perda de oportunidades. Os punks e os rappers vão desautorizar-nos a falar sobre eles: nem tudo está aberto para visitação, e eles mesmos vão dizer, de um jeito despreocupado em ser agradável. Alguns rappers foram ao programa Esquenta, da Globo, e de lá disseram ao Mano Brown, avesso a ser cultura de massa, que aquilo não é tão ruim. Certa vez fui num show dos Racionais MCs. Era embaixo de um viaduto, e à noite, o lugar parecia escolhido para inibir "gente de fora". No meio do show, Mano Brown falou que, antigamente, e na quebrada dele, eles atravessavam a rua se vissem um branco vindo na mesma direção. Após dizer isso, abriu um champanhe e chamou gente da platéia para brindar com ele. "Aqui são todos minha gente. Nunca fiz show para playboy". João Gordo, tendo já escrito músicas contra a Igreja Universal, anos depois, foi funcionário da Rede Record. Traidor? Ele diz que ganhava muito bem, e que não era de movimento punk nenhum, onde, segundo ele, não dá para sustentar sua família e está sujeito a sofrer violência. Mas no último disco do Ratos, o protesto continua: contra o político corrupto, contra o pobre que espanca a mulher, a favor das manifestações recentes e contra a polícia, contra os selfies tirados enquanto o mundo acaba. Portador nenhum de uma identidade teria tanta coisa para reclamar. É um apanhado do que pode causar incômodo a muita gente diferente. João, Jão e Boka, a banda, são os representantes deles mesmos, e são uma família, e família precisa de dinheiro. A experiência deles sai num discurso sem a mediação de leituras teóricas ou políticas. O interesse é o de reportar tudo. Voltando à tv, Datena pinçará algumas queixas populares, os cientistas sociais, outras, as elaborarão e falarão. Isso será, respectivamente, o alimento do discurso da política de direita e da política de esquerda, que são refinados, definidos, e descolados da experiência, que não é tão clara e fácil de definir. O jovem que não gosta de estudar, que já conhece tudo (e para quem a própria experiência é avalizadora de conhecimento), que é "massacrado pelos pais, pelos professores e pela Globo", identifica-se com os pobres daqui e com os palestinos, e quer falar por eles. Esses "eles" nem sempre querem que alguém se meta nas suas falas: "quem somos nós, branquinhos, para sabermos do que eles passam?". Há o João Gordo, que não se compromete com o punk, nem com qualquer teoria ou partido, mas identifica-se com o protestar. E com as chances que a cultura de massa lhe dá. Se estamos trocando a experiência das coisas pela experiência de troca de coisas, que é experiência do descarte e, portanto, vazia, como pode alguém falar de uma experiência que considere só dele, sem que ele se absolutize numa identidade, dor ou necessidade, rechaçando a conversa, e viabilizando a conversa com a cultura de massa, aproveitando suas oportunidades, sem deixar que ela esgote sua expressão (que pode ocorrer também em vias particulares, como os "ouvintes de punk")? E como não ser um vazio, um incapaz se ter histórias para contar, e que não precise se defender num absoluto como um "público disso", um "especialista daquilo outro" ou um "defensor da causa tal"?

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