domingo, 24 de agosto de 2014

O exibir-se melancólico e o histérico*

Um melancólico tem o que costumamos chamar de "vida interior rica". Assim é como também entendemos os artistas. O tema recorrente do melancólico é a perda de alguma coisa que lhe servia de norte para a vida. Essa perda, mesmo quando é de um objeto real, tem esse valor simbólico. As ações do melancólico são uma exploração das causas e consequências desta perda. As fantasias, mais do que razões, são a matéria e o produto desta intensa reflexão. Este sujeito fica em seu quarto, criando poemas e pinturas que jamais expõe. Está de tal modo completo nesta bolha, que o olhar do outro gera mal-entendido e incompreensão. Esse olhar é sentido como vindo do nada, pois é externo ao ambiente que o melancólico criou para ele ser melancólico. Um militante político ou religioso são melancólicos que atuam suas fantasias do lado de fora do quarto. São obstinados, na defesa das suas ideias. Rechaçam o que quer que lhes digam. Não escutam nem a uma possível "voz da razão" interna. O melancólico é um extremo do homem moderno traçado pelo freudo-marxismo, qual seja o reprimido em seus instintos, e não sublimado, e que conta apenas com a razão calculadora, estrategista, para agir no mundo. Caso esta razão mostre-se falsa ou insuficiente para cumprir, para o seu usuário, as promessas de uma vida melhor, etc, a repressão dos instintos mostra-se não compensadora. O sujeito, então, cessa de querer usar a razão, e seus instintos agressivos virão com tudo. A agressão, aqui, é tanto contra si mesmo como contra os outros. O por-se-preso, até no uso da razão, é o que ocorre com o melancólico no quarto ou com os apóstolos do "fim do mundo", "dos valores" ou "da família", pregadores da abstenção de riquezas, consumo e sexo. Para Sloterdijk, o homem atual não é o melancólico ou neurótico, mas um ser que se auto-dotou de um equipamento interno para a auto-consulta e auto-desinibição. Ghiraldelli (http://ghiraldelli.pro.br/primordios-da-investigacao-sobre-o-sujeito-peter-sloterdijk/) explica a leitura de Sloterdijk para a cena de Deus criando o primeiro homem: Deus fez uma peça de barro. O oleiro assopra dentro do barro em altas temperaturas, fazendo-o distender-se internamente. Um espaço vazio interno é criado. Deus assoprou pelos buracos das narinas da figura de barro, abrindo-lhe um interior e insuflando-lhe vida. Adão é feito de barro, e com um preenchimento interno volátil, um ar, mas um ar que lhe dá a sensação de possuir o equipamento necessário para ser sujeito, ou seja, para se consultar e por-se em atividade. Um poeta se vê como um criador que utiliza a matéria da sua rica vida interior. Entretanto, esta vida interior pode ser o conjunto de olhadas para as próprias ideias, rearranjando-as, usando a imaginação para desdobrá-las, e ensejando o escrever para si mesmo. Ainda é uma relação de si para si, e o poema parece justificar-se para si mesmo. Sua inspiração é a busca de coisas nesse oco interior que não é tão profundo, é o que está à mão, para uso. Então ele mostra o poema para uma platéia. Dizemos daquele que adora mostrar-se para estranhos, mesmo sem um motivo ou criação para exibir, que é histérico. Diferente de mostrar para um amigo, com quem sente compartilhar da própria interioridade, uma platéia é uma floresta de olhares e de vozes diante da qual só se pode apresentar fazendo-se um tanto surdo ou cego para as reações dos indivíduos. Sua sustentação, e o foco da sua atenção, só pode ser sua interioridade. O melancólico teria toda uma obra para desfilar. O histérico tem a vontade de mostrar-se, em primeiro lugar, e seus motivos mudam de inspiração em inspiração, no compasso de cada preenchimento pulmonar. Para ele não importa se o outro o entendeu, mas se foi platéia, se assistiu. *Texto elaborado a partir do curso sobre subjetividade em Peter Sloterdijk, ministrado por Paulo Ghiraldelli Jr, no CEFA.

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