quinta-feira, 10 de julho de 2014

"Mãe, compra aquele jogo pra mim?"

Começamos a vida desconhecendo regras de comportamento. Soltamos pum à mesa do jantar, e os pais acham fofo. Vamos sendo apresentados às regras da casa. Vemo-las como ameaças à nossa espontaneidade: o não enxergar limites e a espontaneidade elogiada pelos pais, mesmo. Os ganhos que se tira da espontaneidade são óbvios. E os ganhos com a contenção? O aprendizado dessas regras dá-se por negociações, em que a criança estará bem atenta ao que ganha ao conter-se para não fazer xixi na roupa ou na cama, e não fazer escândalo na rua. E também o que ganha ao comer tudo no que está no prato, incluindo as verduras. Ela tem tais tarefas à frente, e que são antecedentes das tarefas que terá no resto da vida. Seus novos comportamentos seguem um estilo próprio, um modo particular de fazê-los, e a criança encontra um prazer ali. Mas grande parte da recompensa que espera é a que virá dos pais, que a vêem agindo desta maneira, e não de outra. A criança percebe que o parecer que fez é tão importante quanto o fazer. Se percebe que os pais agem de jeito diverso do que lhe dizem para fazer, contudo, sacarão que a imagem do comportamento é mais importante do que o próprio comportamento. Buscará, então, a medida do mínimo a ser feito, para atingir a aparência de que fez. Uma nota baixa na escola virá com uma desculpa. Ela sempre vem com uma desculpa, mas a criança que não teve a perda de valor dos seus feitos reais, o que ocorre se viu seus pais não cuidarem dos próprios feitos, e dissimularem-no, saberá, por si mesma, que precisa estudar mais. Se o aprender conteúdos e o ir bem nas provas não têm outro valor que não o da imagem que livra do castigo ou dá recompensas, a criança só pensará em formas mil de dissimular. Somos o que parecemos, inclusive, o que parecemos para nós mesmos. Imagens. E vivemos num mercado. O mercado faz o meu trabalho valer o mesmo que uma viagem, ou dez calças, ou mil reais. Um valor em dinheiro é atribuído a tudo, e tudo passa a ser comparável. E o mercado é a troca do que se mostra. Nossa existência é comunicação entre imagens que se apresentam. Queremos mostrar sagacidade, capacidade de consumo, bom desempenho sexual, bom desempenho esportivo, etc. Adoramos uma propaganda. Eis que a propaganda, a imagem do feito, substitui o feito em si. Não importa bons resultados no trabalho. Não importa preparação e disciplina. Os resultados buscados são a produção de imagens maquiadas. E a disciplina que desenvolvemos é para isso. Veja as propagandas políticas dos partidos no poder, mostrando hospitais e escolas. E essas imagens maquiadas também são as utilizadas no olhar do indivíduo para si mesmo. O eu é um efeito de auto-reflexão utilizando imagens, que, nesse caso, são enganadoras. Acreditamos nelas, e, ao mesmo tempo, sabemos que nosso trabalho é dissimular. Nos auto-enganamos e sabemos que fazemos isso, a ponto de nos esmerarmos no auto-engano. Nos relacionamos mais com as imagens do que com as coisas reais. Tiramos fotos de mendigos, ao invés de fazermos algo que ajude. Postamos a foto na internet e nos tornamos pessoas que ajudam. Mas sabemos bem que não ajudamos. Não fizemos nada para nos orgulharmos, exceto a imagem (verdadeira ou falsa, não importa. O importante é ganhar a Copa), a foto bem tirada. Somos a mesma coisa que a CBF, o Luciano Huck e governos (no que tange as políticas públicas). O 7 a 0 rasgou nossa foto de povo do futebol. A tv procura no sofrimento das crianças a representação do sofrimento nosso. Queremos voltar à idade da inocência, o de se estar isento de regras. A foto de reis do futebol era falsa, e foi rasgada em sete pedaços. Qual outra foto nos resta? O filme das escolas e hospitais públicos já está queimado. Não podemos usá-lo. Vamos em busca de uma imagem. Uma boa imagem, que dê auto-estima e sirva de apoio a que façamos algo. Que tal uma boa imagem real, feita no contato com as deficiências das coisas da cidade e de si mesmo, e um agir para melhorá-las? Uma boa imagem terá que começar com uma péssima imagem. Conseguimos encarar esse espelho? Se você quer ter habilidades, faça-se habilidoso. Se vocè quer um bom governo, faça o governo ser bom. Olhe-se com vergonha por não estar indo bem, na construção da vida individual e coletiva, e por ter feito parecer que sim. Preocupe-se, sobretudo, com essa dissimulação pública e auto-engano íntimo. Somos criativos e alegres. Isso somos, mesmo. Temos a força de quem apanha e quer a revanche. Podemos nos olhar nisso e, não agir, mas reagir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário