quarta-feira, 16 de julho de 2014

Bater, rir e passar uma cantada

Para Hobbes, o ser humano é naturalmente desconfiado de outro ser humano. E competitivo. Um estado de constante guerra de todos contra todos seria inevitável. Para poder viver em paz, sem medo de ataques, os homens criam um "pacto coletivo de renúncia ao uso irrestrito da força" (Castro e Ghiraldelli, A Nova Filosofia da Educação, p.160), em que cada um abre mão de parte da sua liberdade e delega a um soberano (o Leviatã) o monopólio do poder da coerção. O Leviatã age em nome de cada um, cuida da proteção do indivíduo enquanto participante da coletividade de homens. Na República, do Platão, o guardião deveria combinar, em sua alma, a animosidade e a brandura. A animosidade é prontidão para reagir a qualquer ataque à cidade. Brandura é a característica do cão que não morde seus companheiros cães e humanos. O bom guardião defende a casa, e não a destrói internamente. Ele precisa ter sob controle o seu impulso guerreiro. As ações da polícia nas recentes manifestações de rua, no Rio de Janeiro e em outras cidades, mostram que não tem havido esse autocontrole, por parte dos policiais. O Estado não fornece uma escola que permita a melhoria das condições de vida da população, que se ocupa no setor de serviços e comércio, na maior parte sem direitos trabalhistas. No comércio ilegal de drogas, as armas permitem que os jovens experimentem algum poder sobre suas vítimas e a própria comunidade em que vivem. Querem encantar as garotas. O soldado (de curta vida) do tráfico tem a animosidade turbinada pela droga e pela excitação dos tiroteios e outros crimes. A violência é o modo com que nos relacionamos. Policiais não se vêem como guardiões equilibrados, funcionários da tarefa estatal de segurar uma arma para proteger quem está à sua frente: o poder que conta é o dele mesmo, e ele se apresentará em qualquer situação com a intenção de coagir alguém. O Estado os solta assim, despreparados técnica e psicologicamente, para lidar com a "massa". Em relações baseadas em pequenos poderes violentos, o sexo, já isento de erotismo, é confundido com agressão. Muitas relações íntimas dão-se num clima de dominação, e o carinho é parte de um ritual bruto. Em Negrinha, conto de Monteiro Lobato, a Senhora tem por maior passatempo os castigos cruéis sobre a menina negra orfã. A menina nada fala, sente-se merecedora, acha que a vida é mesmo aquela. O padre visita e abençoa a Senhora, por cuidar tão bem de uma criatura que sem ela estaria perdida. A falta de poder de Negrinha enseja os abusos surdos. Neste vídeo (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/07/pm-canta-ativista-agredida-no-rio-e-ironiza-ataque-machucou-que-pena.html), o policial ouve de uma manifestante os motivos dos seus protestos. Ele os qualifica como imaturos. Depois, ouve que ela sofreu algumas agressões. Ele pergunta se machucou, em tom de ironia. Então ele diz que está sentindo uma química entre eles, e que não é efeito do gás lacrimogêneo. A jovem não tem poder. O policial ri, domina aquela cena e participa do arrasamento dos policiais sobre os manifestantes. Passar uma cantada, pegá-la para uma agressão confundida com sexo, está dentro do esperado. Esses pequenos poderes não têm nada a ver com proteção de indivíduos. Não há trabalho por uma coletividade. Não há sentidos ou objetivos maiores, além da dominação imediata do outro. E há a certeza de que esse outro não falará nada. E se falar, que diferença faz? A ação dele não parte da consulta a uma instância de razoabilidade interna (sigo uma inspiração em Sloterdijk). Os chutes do policial, os sprays e balas de borracha na cara, são pura ação compulsiva, sem reflexão.

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