quarta-feira, 18 de junho de 2014

Uma indagação a um movimento social

O "não" instaura uma distância entre aquilo que o profere e todo o restante. Corta uma certa confusão entre corpos. É a ocasião para uma autoconsulta: "isso não corresponde ao que eu quero. Então o que eu quero? Como posso buscá-lo?". Dizer "não" é necessário para que se diga "sim", se acione a si mesmo em direção a algo. Domingo, dia 15 de junho, estive em uma manifestação anti-Copa, ocorrida na Praça Saens Peña, Rio. Reparei em uns cartazes assinados por uma Frente Independente Popular. Perguntei a quem segurava o porquê de ser independente, e não livre. Independente quer dizer não dependente. Mas dizer-se livre seria uma afirmação, a colocação de um si mesmo em cena. Responderam-me que a FIP é uma congregação de pessoas de várias cidades do Rio, insatisfeitas com a administração pública da saúde, da educação, etc. E que era independente por não ter qualquer ligação com partido político. Mas por que não livre?, insisti. Recebi a mesma resposta. Sloterdijk conta o episódio em que Diógenes, durante o dia, levava uma lanterna acesa durante uma caminhada em Atenas. Perguntaram-no o porquê daquilo. "Procuro homens." Como, não servia aquele que lhe perguntava? Não servia. Sua ideia de homem não era realizada pelos seus concidadãos: "o filósofo da lanterna caracteriza seus concidadãos como aleijados sociais, seres mal-formados, viciados. De modo algum correspondem à imagem do indivíduo autárquico, senhor de si e livre, com a qual o filósofo procura interpretar sua própria forma de vida" (Sloterdijk, Crítica da razão cínica. p. 226). O homem verdadeiro é senhor dos seus desejos, e não submetido a eles. Vive com pouco, pois isso lhe é possível. Viver com mais seria arriscar-se à escravidão das próprias necessidades. O homem deve viver para fruir o que há para fruir (o banho de sol e o assistir o movimento da cidade), e só possuir o suficiente para suas necessidades naturais. O homem urbanizado busca acumular coisas, vive de modo irracional e desumano. Diógenes viveu num período de alargamento do que era a cidade grega: não mais uma comunidade urbana, mas um lugar de comunicação com a cultura das cidades do mediterrâneo. Perguntado sobre qual era a sua pátria, Diógenes dizia-se cidadão do mundo. "Assim, o kynikos sacrifica sua identidade social e renuncia ao conforto psíquico da cega aderência a um grupo político para salvar sua identidade existencial e cósmica. Ele defende de modo individualista o universal contra um particular coletivo." (op cit. p228). Enquanto a sociedade não for uma pólis do mundo, o filósofo será alguém que perturba a ordem e se recusa à identificação com quem encontra. Dizer-se não dependente de partidos não basta. Deixa margem a que se pense em dependência em relação a outras coisas. Às próprias necessidades, talvez, seguindo Diógenes. É uma recusa, mas não uma recusa total, busca pelo ser senhor de si mesmo. Os cartazes da FIP diziam que recusava-se a Copa, e que o governo devia algumas providências à população. Como essas providências seriam tomadas, hoje, senão por vereadores, secretários e prefeitos vinculados a partidos, e passando pelo que estes decidissem fazer ou não? Os serviços da cidade têm oferecido menos do que o necessário. Um ser dono das próprias necessidades significa buscar o seu atendimento. Se o atendimento é por meio de um governo, que se fale com ele sem mediadores. A FIP, enquanto entidade civil, pode conseguir reuniões com secretários e prefeitos. Nestas circuntâncias, estaria bem próxima de poder assumir-se livre, largando a insegurança patente na palavra "independente". Agora, se está à espera que um representante público fale por ela, o "ser independente de partidos" pode até significar não escolhê-los a priori, mas é um esperar que eles venham. Pode-se até não se dizer afiliado a ele, mas há uma certa dependência. É um não dar conta de si mesmo.

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