sexta-feira, 13 de junho de 2014

Plantador de desertos

Rubem estava aqui me contando, na "Casa dos Braga", do Amarelo. É o rio vizinho da sua casa de infância. Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo. Rubem e a garotada conheciam "cada pedra, cada tufo de capim, cada tronco atravessado, cada pé de inhame ou de taioba" do trecho em que mais brincavam. Os peixes grandes não subiam até lá. Um dia o irmão cutucou, com um pau, embaixo de uma pedra, para desentocar o bicho grande que se escondia. Rubem estava pronto com a peneira. Quando ele foi ver o que tinha dentro, uma grande cobra preta veio na sua cara. Rubem atirou a peneira longe, com o muçum e tudo, e caiu apavorado dentro d'água. Subindo um pouco o rio havia um açude fundo, margeado por árvores grandes, de um lado, e pelo sopé do morro, do outro. Os garotos escorregavam do alto do morro, usando toscas jangadas, e tchibum! na água. Rubem está contando do passado, dele e do Amarelo: ele agora é velho, o açude acabou e o córrego está magrinho, sumido. O querido Amarelo, terno amigo de infância, está morrendo. Rubem lembra de ter lido, na escola, dos rios que sumiam, no Nordeste. Era curioso, notícia distante, matéria escolar. Destes livros, lembro-me dos índios que viviam em paz, mas foram dizimados. Não pela natureza, mas pelo homem. A gente fala "homem branco", mas poderia falar apenas "homem", já que o índio nunca é "homem de pele vermelha". Só os Yahoos e os Apaches o são. Os índios daqui deviam ter querido ser o que eram, seres de caçar, mergulhar no rio, sonhar com Iara e admirar Tupã. Quem diria que encontraríamos índios "legítimos" (até onde podem ser) bem no meio do Rio de Janeiro? Esse rio que corre avassalador, e leva o que está na margem? Índios vivos! De cocar, dança circular, caciques, peitos de fora, tudo aqui? A Aldeia Maracanã já há um tempo estava perto. Esses índios eram muito parecidos com os dos livros, e também desapareceriam. Quando vimos que existiam, estávamos prestes a fazê-los desaparecer. Foi por isso que reparamos neles. Então a guerra ocorreu entre um punhado de homens brancos, defensores dos índios e do seu território, e outro punhado, que atirava. Os defensores cantaram, dançaram com seus velhos conhecidos da escola. A escola, se ensinou algo, foi a sentir a perda das coisas que não chegamos a conhecer (incluindo a própria escola. Num futuro próximo leremos, na escola, sobre o desaparecimento dela mesma). O rio de Heráclito tinha harmonia, tudo deixava de existir, mudava, não só quem estava na margem. Tudo bem. Já o rio do homem, salva só o próprio homem. Não é justo. Há um desequilíbrio. Agarramo-nos nos índios, seres de uma bondade não-humana, como a amigos antigos. Eles, tradicionais. Nós, sem tradições e professores. Tradição de destruição, isso nós temos. Só mesmo os personagens dessas narrativas vindo aqui para nos fazer parar. Dois anos depois, a força do rio diminuiu. A Aldeia Maracanã permanece, e nós aqui, sem precisar ir defendê-la. Os índios ainda estão em nossos livros, pois são amigos a quem sempre podemos perder. Se há algo que dura, no rio da vida, é a perda. Perda de tudo, no rio de Heráclito. O homem nem sente, nesse caso, pois ele também não estará mais aqui. Se for o rio que preserva o homem, e leva o restante, o homem ficará sozinho.

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