quarta-feira, 18 de junho de 2014

Perséfone só quer gozar

Escrito em 24 de janeiro, quando da exibição da novela "Amor à vida": Esses dias, na novela, Perséfone serviu pernil, salada com bacon e macarrão com linguiça para seu ex-marido. Daniel queria reatar, mas ela precisava saber se ele ainda implicaria com sua comida. E Daniel reclamou, disse que linguiça no macarrão a deixava gorda. O mundaréu de comida anunciava que a sobremesa, servida no quarto, também seria farta. Daniel não quis nem uma coisa, nem outra, e Perséfone disse que ele não a aceitava em seus hábitos e corpo. Mandou-o embora. Ambos ficaram tristes, pois se gostavam. Para ela, ser amada é ser aceita por ser quem ela é, e o "quem ela é" aparece aqui como o que ela faz, o que ela come e o corpo próprio. Para ele, amar é justamente relembrá-la da tarefa de controlar a própria alimentação. Perséfone até pouco tempo era virgem. O sexo dividia seus pensamentos com a comida. Na verdade, naquela época ele vinha um pouco à frente. Sexo e comida, às vezes comida e sexo. Ela então casou-se, fez o tal do sexo e agora o que quer é compartilhar essas coisas com um namorado. Não vou dizer que Perséfone tem uma compulsão por sexo e comida. Pondé, se a visse, provavelmente diria que sim. Em entrevista para o Canal Livre (assista aqui: http://www.youtube.com/watch?v=EgHMHuUzaBc), ele falou sobre a felicidade. Ele trouxe uma posição comum na filosofia: a de que um estado permanente de felicidade não é para o homem. Apesar disso, esse homem tem buscado sem parar a felicidade "brega", no dizer de Pondé, prometida em propagandas ou em livros de auto-ajuda. Isso, prossegue Pondé, ocorre com o homem da cidade, cercado de muitos estímulos e solicitações. O do campo, diferentemente, encontraria no ambiente natural, imutável ou controlável não por ele, mas por uma força superior, um quadro para entender sua posição no universo, conferindo-lhe parâmetros para a própria vida e contribuindo para que ele não tenha vícios ou compulsões. O homem urbano sofreria de ansiedade esperando pelo prazer que não vem. É uma boa narrativa essa que Pondé nos apresenta. Podemos ampliá-la sacando, por exemplo, o "Tudo que é sólido desmancha no ar", do Marshal Berman. No campo a vida segue os tempos da natureza: o dia, a noite, as estações, a época do plantio e a da colheira; dos bichos, incluindo o homem, o nascimento, o desenvolvimento e o emprego nas funções certas, a procriação e a morte. Tudo anda bem azeitado, seguindo leis maiores do que o homem e que o determinam. Na mercearia da cidade pequena as roupas têm tamanhos P, M ou G, e está bom. Já a cidade grande é o lugar da modernidade, ou seja, a situação em que o homem pôs a mão no mundo e o modificou completamente, atendendo suas próprias necessidades. Tudo existe e funciona de acordo com a vontade humana, que não pára, enfim, de se exercer sobre o mundo. Fica difícil para o homem encontrar uma referência estável para a sua vida. Na loja da esquina, o P, o M e o G agora são seguidos pelo GG, o XG, o XXG, etc. A pizza é gigante, ou duas gigantes meio a meio. A fome aumentou. Tudo se amplia à medida que a vontade humana também se amplia, e sua mão entra em ação. Este homem não se importa com o que diria um estóico. Pondé bem apresentou o estoicismo, como uma doutrina filosófica antiga que atua como uma medicina da alma. O estóico diria que a vida, da mesma forma que proporciona condições para termos prazer, mais à frente retirará essas condições e nos deixará no desprazer. Por isso, o conselho é que minimizemos o quanto possível a vivência dos prazeres, de modo que, quando eles cessarem, não sentiremos a sua falta, não sofreremos. A iminência dessa falta também seria vivida com menos ansiedade. O estoicismo contraria a busca humana por exercer sua vontade, aumentar sua fome e buscar saciá-la. Na boca de Pondé essa doutrina o faz soar um mau psicanalista. Somos faltosos, falta-nos um objeto primordial de investimento amoroso. Passamos a vida buscando imitações dele, tomando-o pela coisa real, pelo que realmente queremos. Como não o é, não nos satisfazemos e o trocamos incessantemente por novos. Há Platão nessa psicanálise, a ver por essa ideia de que as coisas que conhecemos são cópias de outras, as verdadeiras, as quais nunca temos acesso. O que não é necessário é colocarmos estoicismo nessa jogada. Nossa condição é buscar incessantemente algo que não podemos ter. Podemos aprender a viver assim. Se esse não for o mundo real, não tem como sabermos. Nietzsche já nos alertou que acreditar num outro mundo, numa outra vida que seja mais real do que esta que temos diante de nós, é uma atitude de fraqueza. Uma saída disso pela via do querer menos, seguindo uma inspiração estóica, tem cara de desistência da vida. A fala que aconselha você a querer menos está na boca de todos, incluindo psicanalistas e filósofos. Está na boca de quem viu a Patrícia, amiga da Perséfone, fazendo sexo no consultório e no elevador, e ao invés de apenas relembrar as normas do lugar, lançou um riso de escarninho e censura para ela. Perséfone não tem problemas com a forma com que anda fazendo o que gosta. Será que ela não encontrou uma medida toda dela para viver o prazer, como outro médico da alma, Epicuro, aconselharia? Não tão pouca comida ou sexo, a ponto de não sentir o seu gosto, e nem tanto a ponto de começar a sentir enjôo. Nem uma gota, um grão ou uma fricção a mais. E o mínimo necessário para gozar. Assim ela não se frustraria. Ninguém pode dizer para Penélope como viver o prazer. É ela que deve experimentá-lo e aprender a própria sintonia fina. E ela espera um homem para dividir as fomes e o aprendizado de como regular o próprio prazer. Compulsivos são os que vigiam como e com quem ela come. Esses estão preocupados demais com os tesões do outro para terem qualquer chance de sentir o deles. Não há fórmulas para a felicidade, apesar de elas sempre serem oferecidas por aí. Será que realmente acreditamos nessas fórmulas? Ou temos, aqui e acolá, conseguido proporcionar para nós mesmos, e mais alguém, uma boa noite de prazer? Quem bate demais na tecla que o homem não vê a própria insatisfação quer substituir a propagada da felicidade pela da infelicidade.

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