quarta-feira, 11 de junho de 2014

Nosso filósofo favorito

Há anos ele saiu de casa. Envergonhado, foi morar nas ruas e beber, para esquecer a mulher e a barriga dela, de meses. Alguém especial o ajudou a levantar-se. Ele trabalhou como ajudante de cozinha. Logo abriu uma van de comida. Sentiu vir a coragem para reencontrar a mulher, que já não era mais dele, e para apresentar-se ao filho (filha?). Esse filme não existe, mas é parecidíssimo com uma porção deles. O homem normal, suas perturbações de alma, são um assunto que gostamos. O autor de teatro Fernando Marques fez uma versão de Woyzek, de Büchner. Segundo Fernando, o homem comum não tinha espaço na tragédia, e não tem no drama. Woyzek, batizado de Zé, por ele, é o primeiro personagem popular de drama a ter grande reconhecimento. Zé, um simples barbeiro, é constantemente assediado por um oficial de polícia. Esse oficial pegará a mulher de Zé. Este arranjará uma boa lâmina e esperará a chegada da mulher, em casa. Após uma breve discussão, é perpetrado o assassinato (saiba mais sobre "Zé", aqui: http://teatrojornal.com.br/2014/01/prefacio-de-ze-escuta-de-marques-para-woyzeck/). Assisti essa ação desenrolar-se, numa leitura dramatizada. Fernando contou de uma fala dele mesmo sobre a peça, de outra ocasião, dizendo que Zé cometera um grave crime, e deveria ser julgado por isso. Segundo Fernando, a platéia demonstrou incômodo, e comentou que aquela opinião dele era reacionária. Marx é um filósofo que está muito em nossa boca. Não o lemos, mas lemos em algum lugar, ou simplesmente recebemos pela cultura, em geral, que ele é favorável a reinvidicações e, se o é, por extensão, defende os desfavorecidos. Marx viu a fábrica e a rotina do proletário como formadoras da sua consciência. E esta consciência como reprodutora das condições materiais. Ao trabalho deste proletário é atribuído um valor, comparável aos dos objetos vendidos no mercado. O homem torna-se também um objeto. Essa é a reificação. Este homem pára diante da vitrine de um restaurante. Ele não tem dinheiro para entrar ali, nem quando é início de mês. Mas vê o restaurante cheio, a tv fazendo muita propaganda, e sente uma enorme vontade de participar daquilo. Aquela comida é fetichizada, ganha vida própria, para o homem. O mercado sempre produziria falsa-consciência, ideologia. Marx colocou-se ao lado do proletário, para ajudá-lo a ter consciência daquilo em que toma parte. A filosofia passou longo tempo sem estar assim, ombro a ombro, com o homem. Esteve com Sócrates, em seu trabalho de cuidar do cuidado de si, dos outros, do exame da própria vida, do seu concidadão. Mas Platão, preocupado em formular uma teoria da cidade justa, buscou a verdadeira verdade, acima das nossas diferenças de opinião, e a realidade mais real, além do nosso cotidiano marcado pela mudança das coisas. Platão falou das nossas questões de alma, amor. Mas mirou na metafísica, não no homem. Santo Agostinho e Descartes eram um bispo e alguém educado por jesuítas, respectivamente. Ambos fizeram teorias sobre o homem: Agostinho falou sobre a vontade, como a principal parte da nossa alma; Descartes fundamentou em um eu a possibilidade de se conhecer algo. Para o homem comum, a filosofia não fazia diferença. E, de certo modo, ele não fazia diferença para a filosofia. A investigação da filosofia era sobre a alma e sobre o conhecimento. As alterações na vontade, e as formas de consciência, do homem comum eram coisas menores. Sob o governo de reis, o povo era meio bárbaro e desprovido de consciência. Kant foi da época que devolveu o nosso direito - dever! - de pensarmos e decidirmos por nós mesmos. Mas ele jogou-nos para um sujeito transcedental, que pouco interessaria a quem não estivesse envolvido na questão de como é possível conhecer, e em definir a faculdade da razão. Marx deu-nos nomes, proletários e burgueses, e disse que a questão da filosofia é o nosso próprio drama pessoal. Nossa vida é relevante. E devemos fazer algo por ela. Vanguardas ligadas à academia levaram adiante o nome de Marx e de marxistas, extrapolando os movimentos políticos, ganhando a cultura erudita, chegando até à de massas. O intelectual de esquerda tem um ciúmes lascado do pobre, a ponto de não vê-lo de outra forma, ou se ver de outra forma. E há uma sensação comum de mal-estar, nosso, de que não assumimos responsabilidade para com ele. O senso comum aproxima-se do marxismo. Precisamos tomar distância disso e olharmos o pobre como podendo ter outras questões, como o auto-controle da sua vontade, ou a assunção de sua razão julgadora e decisora. O ser pobre não é determinante, nessas questões. O pobre o é, claro, por uma má distribuição das oportunidades de produzir e consumir bens. Mas a ele também pode importar seu ser homem, seu errar e pensar errado, seu poder agir e pensar de muitas forma, essas preocupações que são de todos. Ele pode estar brutalizado por uma vida difícil, ou melhor, indigna e sem educação. Isso não tem necessariamente a ver com "ser pobre". Pode cometer um crime passional, não por "falta de consciência", como diríamos, marxistamente. Ele tem o direito de não viver na luta de classes.

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