sábado, 31 de maio de 2014

Você é um rato ou um homem?

O homem era um ser que agia no mundo. Vivia medindo sua força com os outros. Subjugava ou era subjugado, agia sobre alguém ou sofria a ação dele. Então vem o fraco, aquele que quer ser poupado dessa vida de jogo, forças e ações, e diz ao forte, aquele que a vive de peito aberto: "isso que você faz prejudica os outros. Eu sei que você sabe disso, mas, veja, isso é errado, você é prisioneiro de uma natureza, que o brutaliza. Você pode começar a pensar em quem você prejudica não mais como um adversário, mas como alguém que tem sido a sua presa, e sofrido com isso. Você precisa aproximar-se do que ele sente, pois ele poderia ser você. Você poderia estar sofrendo, aqui. Troque essa selvageria pela paz de uma comunidade. Nela, você estará protegido. Basta começar a ter consciência de si, e responsabilidade pelo que faz. Você é livre para mudar, ou seja, é um sujeito". O forte, então, começa a querer ser sujeito, aquele que é livre para agir (agir sobre si mesmo), impedido por nada, por ser dotado de consciência. Ele começa a frear sua ação, pois procura um sentido para aquilo tudo. Afasta-se progressivamente da vida, pois vai acreditando em outro modo de ser, que não está imediatamente ali, pois está num outro lugar, onde reside a verdade das coisas. Esse ser vai tornando-se igual a todos os fracos que compõem uma massa. Essa minha leitura de Nietzsche pega, em alguns momentos, o vocabulário que Sloterdijk usa para falar de subjetividade. Só que, para este, sujeito é justamente aquele que faz a passagem da teoria para a ação. É quem se desinibe para agir. Nossa ideia corriqueira de sujeito é não é bem essa: é a de que ele é algo que age, sim, mas "sabendo o que faz". E que, para "saber o que faz", em cada situação, usa esquemas de raciocínio e de moral, adquiridos em experiências anteriores, armazenados num "espaço interior". Há um si mesmo que pesaria sobre a ação, e do qual cobra-se que seja uma consciência aguda e um implacável responsabilizador de si mesmo. O sujeito transcendental kantiano é uma das suas figuras de referência. Mas, e se o sujeito não fosse substancial, não se fundamentasse em algo destacado dos acontecimentos, e que não tivesse uma permanência, em meio à mudança das coisas? O homem sempre quis sobreviver à vida, ir além dela. Criou a ideia da permanência de si mesmo. Acabou perdendo de vista uma noção da literatura que diz que ele é quem age. Tudo bem, o romance deu tudo para que ele achasse que seus profundos motivos fossem literalmente profundos, ou guardados. Leu literalmente a literatura... "O sujeito é o responsável pela ação". Aí é que esquecemos o agir e ficamos só com a responsabilidade e o sujeito por detrás dela. E se voltássemos à ação? Teríamos não mais o "dizer não à vida", mas o "dizer sim a ela". Como respondo a cada situação, usando o que tenho disponível, para agir. Quer dizer, memórias, razões, morais e gostos existem, mas existem como fenômenos, na hora de se fazer algo. Dizer sim, na hora certa. E dizer não, também na hora certa: "qual a razão de existirem pobres e ricos?", pergunta o pobre, querendo aumentar o esclarecimento. Ele dirá um "não", ao estado de coisas, entrará em greve (não cruzará os braços: sua ação virou outra). Sloterdijk fala desse cinismo, que descongela a razão de uma hegemonia, e faz as coisas voltarem a acontecer. Hoje vi o desenho Ratatouille. O ratinho seleciona o que come, escolhe alimentos pela qualidade, pois quer sobteviver, e pelo sabor, pois quer viver, feito os humanos. Os humanos aproveitam os sabores, têm gastronomia. Criam pratos. Os ratos roubam. Segundo seu pai, os ratos fazem isso porque, no mundo, ninguém é por eles. Então têm que se defender, só pensarem em comer qualquer coisa e aumentar o ninho. Os humanos são maus. O ratinho considera essa ideia. Mas sabe que o homem é aquele que age, e como tem coisas gostosas pra comer, pode agir bem, ou seja, cozinhar bem e bem administrar um restaurante, o que implica cooperação e amizade entre cozinheiros, entre cozinheiros e consumidores, entre sabores, entre receita e gastos, e entre um rato que age e um homem. Bem, o homem escolhido pelo ratinho, para introduzi-lo na cozinha e permitir que ele cozinhasse era tímido e desengonçado. O ratinho teve que controlá-lo. Mas do cérebro? De uma comunicação telepática para a mente do homem? Nada disso. O ratinho pôs-se a puxar os cabelos do aprendiz de cozinheiro, gastando muita energia nessa ação para fazer o homem agir (inicialmente, como marionete, heterônomo, mas logo ficando autônomo). E o ratinho logo se mostrará aos outros humanos, no restaurante, pois, tendo feito todos provarem as qualidades dos pratos que realizou, será reconhecido como sujeito, com direito a atuar como cozinheiro. Gostamos do samba, do funk, e atribuímos subjetividade ao negro e ao pobre. Mas quem é esse nós, que fez essa atribuição? Nós que ouvimos e dançamos, tornamo-nos, então, sujeitos, e que dançamos, às vezes juntos, com as pessoas que fazem a cultura popular. Assim, vemos-los como seres que fizeram essas músicas e danças. E a própria apresentação deles os faz existirem. E podemos todos fazer, às vezes juntos, em uma rivalidade que atiça a vontade, ou em outros tipos de parceria, não apenas música, ou modos de produzir e consumir, mas também novos direitos, formas de sentir prazer...

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